Nesta quarta-feira (13), o financiamento coletivo para a realização da CryptoRave atingiu sua meta com o apoio de quase 500 pessoas através da internet. A CryptoRave é um grande evento sobre tecnologia, segurança e privacidade que acontece em São Paulo a partir do esforço coletivo de diversas pessoas e grupos. Para entender melhor suas pautas e objetivos, conversamos com a organização do evento e disponibilizamos aqui o resultado na íntegra:

# Quais os objetivos da CryptoRave? Como ela é organizada?
A CryptoRave é um esforço coletivo para difundir os conceitos fundamentais de segurança e privacidade na Internet e o uso de ferramentas de segurança digital. Após duas edições, em 2014 e 2015, neste ano nós pretendemos fortalecer essa comunidade e, por isso, fizemos um Chamado para Atividades. Recebemos mais de 70 atividades, inclusive de pessoas de outros países. O objetivo é nos afirmar como um encontro independente de uma comunidade preocupada com esses temas, em um espaço onde o público possa se engajar nesta luta.

A CryptoRave é um evento organizado de forma voluntária pelos coletivos Actantes, Escola de Ativismo, Intervozes e Saravá, mas realizado colaborativamente por muitos indivíduos. As discussões ocorrem por lista de e-mails e em reuniões presenciais. Em geral, as decisões são tomadas de forma a se chegar a um consenso.

# Por que apostar num financiamento coletivo?
Para garantir um evento independente e aberto ao público. A CryptoRave tem uma política de doações para que todas as despesas sejam cobertas por contribuições voluntárias. Um evento importante como este não pode ser realizado sem a mobilização de muitos esforços. Mas, não só isso: se contássemos com poucos e grandes doadores, a sustentabilidade do evento estaria muito comprometida caso um deles deixasse de nos apoiar. Como a ideia do próprio evento é disseminar e divulgar a privacidade e a criptografia, o financiamento coletivo é também uma forma de agregar pessoas interessadas no assunto e fomentar uma comunidade no Brasil.

Além disso, o financiamento coletivo nos permite compartilhar a CryptoRave com muito mais pessoas. Até agora, somos mais de 400 pessoas interessadas em investir na privacidade e na liberdade na rede. Isso é muito potente, porque garante que não haja interesses outros senão disseminar a criptografia e realizar debates sobre os nossos direitos digitais. Por nós e para nós (e outros muitos de nós).

#O lema da cryptorave é “+24h por privacidade e liberdade na rede”. O que vocês entendem por privacidade e liberdade? Por que as redes precisam desses dois eixos?
Tecnologias são criadas e utilizadas para controlar e oprimir, mas também para salvar e para libertar. A Internet foi, originalmente, projetada com a finalidade bélica de criar um sistema de comunicação robusto. Os militares norte americanos perceberam que a comunicação distribuída, sem centros de controle, tornava o sistema de comunicação mais forte, menos vulnerável à ataques.

Apesar de ser um projeto militar, desenvolvido no contexto da Guerra Fria, a internet foi tomada pelas pessoas, que encontraram nela uma forma de se comunicar. Uma estrutura que permitia uma comunicação horizontal, o acesso a informações e seu compartilhamento. Essas pessoas se apropriaram desta tecnologia e foram as responsáveis pelo desenvolvimento da internet como conhecemos hoje: um espaço que permite a produção, a recombinação e o compartilhamento de uma imensa diversidade de conteúdos e perspectivas. Mas infelizmente esta rede livre foi subvertida.

Os governos e empresas, interessados no controle da rede e na capitalização das ações coletivas que por lá ocorrem, criam mecanismos de vigilância para impedir ações anônimas na rede. Não podemos mais visitar um site sem que alguém saiba o que estamos vendo. Hoje, algoritmos que controlam nossos resultados de buscas nos oferecem o que o patrocinador do site tem a vender, na mesma medida em que oferecem, como produtos, as informações sobre a nossa navegação, nossos hábitos, nossos interesses e relações pessoais, em um mercado de dados pessoais extremamente lucrativo. Nos fazem ter a sensação de que a Rede trabalha a nosso favor.

Um exemplo disso são os dados de mulheres grávidas, considerados incrivelmente valiosos pelas empresas. Isso ocorre porque existe um vasto mercado de produtos direcionados a bebês e mulheres grávidas mas também porque a chegada de uma criança altera de maneira significativa o padrão de consumo de uma família. De acordo com a socióloga Hanet Vertesi, da Universidade de Princeton, nos EUA, os dados de uma pessoa valem em média dez centavos de dólar, enquanto os dados de uma mulher grávida podem valer cerca de U$ 1,5. Esses dados são coletados a partir das informações sobre a nossa navegação na rede, e do uso de cartões de crédito e cartões de fidelidade em estabelecimentos comerciais, por exemplo.

Acreditamos também que o debate sobre privacidade, segurança e liberdade na internet são de extrema urgência para o combate ao machismo. Podemos tomar como exemplo as repetidas histórias de “vazamentos” de “nudes” (fotos de nus) e ações de slut-shaming [julgamento moralista sobre a sexualidade das mulheres como “putas”], atuações que oprimem e responsabilizam a mulher pela exposição de seu corpo e não o vazador, se faz necessária uma atenção especial da mulher ao uso da comunicação digital com garantias de segurança e de privacidade. As pessoas devem poder guardar e enviar fotos suas sem interceptação. Veja esse Guia Sensual de Segurança Digital!

As redes precisam garantir a privacidade dos seus usuários porque só assim teremos a liberdade essencial de escolher e fazer o que queremos, sem que sejamos por isso vigiados ou punidos.

# Quais os acúmulos da CryptoRave para as mulheres? Essa é uma preocupação específica da organização? Por quê?
Na edição de 2015 criamos um espaço denominado Ada Lovelace em homenagem à matemática e escritora inglesa, responsável por escrever o primeiro algoritmo processado por uma máquina. O objetivo deste espaço é trazer palestras, oficinas e debates construídos por pessoas que se identificam como mulheres sob uma perspectiva feminista. A necessidade de construir esse espaço vem de uma compreensão de que há pouca participação das mulheres em eventos sobre tecnologia, e isto se dá por que muitas vezes estes ambientes abrigam frequentes episódios de machismo e misoginia, que deixam as mulheres em situações desconfortáveis. O Espaço Ada é um convite para promover a participação das mulheres na tecnologia. Na última edição, o Espaço Ada foi uma das trilhas que reuniu o maior público durante a CryptoRave.

Também há uma sala em homenagem a Chelsea Manning, mulher trans e corajosa lutadora pela liberdade da informação. Ex-analista de inteligência dos Estados Unidos, Manning foi condenada à prisão militar pela acusação de vazar para o WikiLeaks os documentos diplomáticos dos EUA, os Diários de Guerra do Afeganistão e Iraque, e o vídeo Assassinato Colateral. Ela cumpre pena de 35 anos numa prisão de segurança máxima e é mais uma vítima da política anti-denúncia dos abusos do governo norte-americano.

Nesta edição, teremos também um espaço dedicado às crianças, porque entendemos que ao acolher crianças estaremos também criando uma estrutura mais acolhedora para mães, que muitas vezes são levadas a assumir sozinhas seu cuidados, dificultando a participação em eventos. Pais e mães poderão levar seus filhos.

Além disso, buscamos ampliar a participação feminina no evento convidando palestrantes mulheres para compor mesas e atividades que fazem parte da programação e estimulamos as mulheres a inscreverem propostas de atividades. Também mantemos uma política anti-assédio e anti-discriminação, assim como outros eventos de tecnologia, como o Fórum Internacional de Software Livre (FISL).

#Qual o papel das mulheres na tecnologia? Algo mudou?
As mulheres estão ligadas à tecnologia desde os primórdios do desenvolvimento de máquinas, computadores e sistemas de comunicação. Mas a nossa histórica sociedade machista fez questão de omitir os nomes de mulheres de destaque. Trata-se de um processo de invisibilização das mulheres pioneiras na computação.

O baixo contato das mulheres com tecnologia é construído socialmente a partir da infância, nos primeiros contatos com a educação formal e influências culturais machistas, e são reforçadas ao longo de toda vida. Além disso, quando há um interesse teimoso da mulher por tecnologia, ela tende a não adotar uma carreira na área pela difícil convivência com o machismo neste ambiente.

Graças à luta feminista e ao empoderamento da mulher, cresceu o acesso das mulheres à informações e à ambientes antes prioritariamente masculinos, como o da tecnologia. O acesso à internet e a ferramentas digitais colabora diariamente com o empoderamento feminino, criando espaços de voz, denúncia e reflexão que incluem a mulher ou até que a colocam no centro da questão. A Internet também se tornou uma ferramenta fundamental para a articulação política, conectando mulheres do mundo todo e construindo redes de comunicação, fortalecendo ainda mais o movimento feminista.  Só para citar alguns exemplos, no último ano tivemos as campanhas#MeuPrimeiroAssédio e #MeuAmigoSecreto, a campanha pelo abaixo assinado “Vai ter shortinho sim”, além de um amplo debate sobre o tema da redação do ENEM, que pautou violência contra a mulher. Essas ações elevam o combate ao machismo no centro do debate.