Entre os dias 10 e 13 de julho de 2019, a SOF realizou a Escola de Formação Feminismo e Agroecologia na Comunidade do Rio Verde, região da Juréia, na cidade de Iguape, Vale do Ribeira. A atividade contou com a participação de 27 mulheres e jovens da Barra do Turvo e de Iguape, e moradoras da Comunidade do Rio Verde e do Grajaúna, que hospedaram o curso no território tradicional onde suas famílias vivem há gerações.

Uma demolição injusta
A atividade ocorreu alguns dias depois da demolição das casas de dois jovens casais da comunidade, que estão sendo criminalizados por ações da Fundação Florestal. “Eles fizeram a casinha deles e [os agentes da Fundação Florestal] tiveram a coragem de ir lá e quebrar. A gente viveu a vida toda tranquilos lá, no mato, e agora tão indo bandidos lá. Porque, para mim, eles irem lá, com idoso, e não querer nem ouvir… para mim, é bandido”.

Os casais, formados por jovens de famílias que estão há gerações no território, haviam pedido autorização de construção da casa várias vezes, e o Estado atrasou e negou os pedidos sistematicamente. Por entenderem que tem o direito de continuar em seu território, mantendo seu modo de vida tradicional, os casais construíram suas casas e, pouco tempo depois, começaram a sofrer sucessivos ataques por parte dos órgãos ambientais, que acabaram na demolição das casas de dois deles. Todo este processo foi acompanhado de forte aparato repressivo do Estado. A comunidade deve demandar autorização para abrir roças em seu próprio território, mas esta autorização tem sido negada aos jovens. A comunidade e movimentos da região têm se mobilizado para apoiar estas famílias, que hoje residem todas em uma mesma casa, que também está sofrendo ameaças de demolição.

As mulheres da Barra do Turvo compartilharam suas experiências com este tipo de política, de “preservação sem gente”, que também está presente no território delas, ainda que apareça de forma diferente.

IMG_5829Conhecer as realidades
A primeira atividade do curso foi uma visita, guiada por mulheres caiçaras da comunidade, à Associação dos Jovens da Juréia. A associação abriga atividades e cursos voltados para a comunidade, além de uma biblioteca e um ateliê, onde as mulheres da comunidade faziam artesanato em madeira de Caixeta. Atualmente a produção das artesãs está paralisada por conta da proibição da extração da Caixeta por parte das comunidades tradicionais. As mulheres conversaram sobre a história da comunidade e sobre como este tipo de política ambiental tem atrapalhado a possibilidade de manutenção dos modos de vida tradicionais das comunidades.

No segundo dia da Escola de Formação, a discussão entre as mulheres se deu em torno do tema da Agroecologia. Pela manhã, elas conheceram a casa de farinha dos moradores da comunidade, que contaram sobre sua forma tradicional de fazer farinha e beiju. Também conheceram a roça tradicional caiçara e trocaram experiências sobre suas formas de fazer a agroecologia, que não é contraditória com a prática da coivara. Houve ainda uma conversa com Nanci, moradora antiga da Comunidade do Grajaúna, que contou sobre o histórico de conflitos que os moradores tradicionais da região já enfrentaram para se manter no território. “Meus filhos são pescadores, vivem de pesca, mas teve uma época que não podia pescar”, diz. E completa: “[Antes] era muito bom, mas depois que trouxe o meio ambiente… mudou bastante”. Dona Nanci tem saudade dos diferentes tipos de cará e inhame que não encontra mais por ali, mas que as mulheres da Barra do Turvo ainda plantam, e ficou a vontade de trocarem mudas e sabores.

Agroecologia é vida
Na segunda parte desta atividade as mulheres se dividiram em grupos e elaboraram programas de rádio sobre agroecologia, com base no que conheceram na visita e na leitura coletiva de parte da publicação Práticas feministas de transformação da economia. Da atividade, saíram sínteses como: “agroecologia é uma união de tudo aquilo que a gente vive”, “se existe violência no lugar, não é a agroecologia plena”, “agroecologia também só se constrói pelo diálogo de saberes, nós fomos andando e conversando com a Nanci, observando o caminho, e fomos aprendendo”.
O dia foi finalizado com um baile de fandango tradicional caiçara.

No terceiro dia do curso, as famílias da Juréia amanheceram com a notícia de que, na madrugada anterior, um juiz havia expedida uma liminar a favor das famílias, que impedia a ação da Fundação Florestal de demolir uma terceira casa da comunidade. A manhã foi de celebração pela liminar, mas também de apreensão e apoio às famílias, que estavam aflitas pela presença da Fundação nas comunidades, destruindo o que havia sobrado da demolição das duas outras casas e sobrevoando a região de helicóptero.

Mudar a vida das mulheres para mudar o mundo
Neste dia o curso tratou dos temas do corpo, da sexualidade, e da relação entre gênero, raça e classe. As mulheres construíram coletivamente a história de uma personagem mulher, que chamaram de Vitória. Através dos acontecimentos da vida desta mulher, discutiram as formas em que operam, no cotidiano das mulheres, o controle sobre os corpos e a sexualidade, o patriarcado, o racismo e o capitalismo.

Elas ressaltaram a importância de terem começado a se organizar em grupos de mulheres para mudarem suas posturas frente às relações que estabelecem em casa e na comunidade: “Tem gente lá que está presa, nesse mundinho fechado, e que tinha que estar nessa reunião. Fico pensando aquelas pessoas que estão lá, e poderiam estar aqui, aprendendo”. Outra participante disse: “aqui, a gente pra sair de casa só avisa, não pede permissão. A gente tem o grupo de mulheres aqui, e aí que a gente viu que tinha uma amiga que achava que estupro não era possível sendo casada. E ela diz, hoje, que o casamento está muito melhor”.

Construindo a autogestão
O último dia de curso tratou dos desafios da autogestão dos grupos onde as mulheres estão inseridas, em seus territórios. Em grupos, elas se reuniram para pensar como os seus coletivos se encontram hoje e o que poderiam fazer para superar as barreiras que se encontram na construção ou consolidação deles. Colocaram que o machismo é um grande obstáculo que as mulheres enfrentam para conseguir participar dos espaços de decisão, principalmente os com homens e mulheres: “A dificuldade que eu sinto, na cooperativa, no coletivo de mulheres, é a dificuldade de unir as mulheres. É muito grande. E a gente respeita as dificuldades, porque sabe que tem filho pequeno pra cuidar…”. Também refletiram sobre os desafios com os maridos: “Ele sempre fala: “o que você vai fazer lá? você não fala nada”. Elas também pontuaram a importância de conhecer mais a cultura da comunidade onde vivem e das vizinhas, de garantir espaços em que os mais velhos transmitam conhecimentos tradicionais para os jovens, e de aprimorar mais as técnicas de produção de alimentos processados.

IMG_5849As comunidades seguem em luta
A avaliação do curso foi um momento para, além de fazer um balanço do curso, agradecer a recepção e dar forças para as famílias da Comunidade do Rio Verde, que receberam as mulheres em sua casa e garantiram a realização do curso mesmo em um contexto tão adverso: “Vou feliz pela liminar, eles são muito merecedores. Vou levar essa força para lutar pelo meu povo quilombola”, “Eu nem tô mais com medo de andar de barco, estou voltando um pouco caiçara”.

As mulheres da Barra do Turvo seguem atentas os desdobramentos da situação na Juréia. Compartilhamos aqui a Carta de apoio ao direito de permanência e existência das famílias caiçaras no território tradicional do Rio Verde e Grajaúna na Juréia, assinada por 176 organizações.