Por Maria Fernanda Marcelino*

Nas últimas semanas, a notícia de que uma menina de dez anos foi violentada por um membro da família e engravidou ganhou os noticiários. A notoriedade do caso não se deu apenas pela violência sexual praticada contra uma menina, o que por si só já seria estarrecedor. Acontece que a mãe da menina buscou ajuda para garantir o direito que, por lei, ela tinha de realizar um aborto legal. Entretanto, uma promotora e uma juíza, em vez de atuar para proteger a criança, agilizar o processo e estancar o sofrimento, separaram mãe e filha por um mês, forçando a passagem do tempo, para tornar o aborto impraticável. Elas quiseram obrigar uma criança a parir outra.

O caso veio a público por uma gravação clandestina, na qual a juíza usa coerção e tortura psicológica para convencer a criança a manter uma gravidez absolutamente indesejada, que representava risco à sua vida, visto que uma menina de dez ou onze anos não reúne as condições físicas necessárias para parir em segurança.

Mãe e filha tiveram sua humanidade desrespeitada. A mãe passou a ser vista como um obstáculo e a filha como um receptáculo sem direitos, sem desejos, sem proteção. Parece roteiro de um filme macabro, mas não é. Essa é a realidade de milhares de meninas e mulheres no Brasil. E, em muitas partes do mundo, ela não tem sido muito diferente.

Os dados do Sistema Único de Saúde (SUS) de 2021 mostram que mais de 17 mil crianças de até 14 anos se tornaram mães no Brasil. Todas elas teriam direito ao aborto garantido por lei, já que não existe relação sexual consentida com crianças. Qualquer ato sexual nessa idade é uma violação, é estupro.

98 crianças e adolescentes de até 13 anos foram estupradas por dia em 2021. São 35.735 crianças e adolescentes. Todos os casos são absurdos, mas é importante dizer que 85% das vítimas são meninas e que 80% dos estupradores são pais ou padrastos, primos, irmãos ou tios das vítimas, ou seja, homens próximos. Os números são chocantes, mas os conservadores, que tanto dizem defender a vida, não se importam com eles. A vida das mulheres e meninas parece não valer nada diante da hipocrisia patriarcal.


Bradamos em todas as manifestações, em todos os panfletos: “legalizar o aborto, direito ao nosso corpo!” / Arquivo MMM

Misoginia à solta

Não é de hoje que a misoginia e o racismo estão naturalizados e se acirrando no Brasil. A misoginia é o ódio ou aversão às mulheres, mais uma violenta expressão do patriarcado sobre nossas vidas. Temos denunciado diariamente o avanço do conservadorismo, que ataca nossos corpos pela violência cotidiana, pela exploração do nosso trabalho e pelo desdém às nossas vidas.

Em 2016, Luana Barbosa, mulher negra, lésbica e mãe foi assassinada na frente do filho, justamente por ser mulher lésbica, negra e pobre. Em 2014, Cláudia Silva Ferreira foi arrastada por uma viatura da Polícia Militar por 300 metros na Zona Norte do Rio. Mulher, pobre, negra. Não houve nenhuma punição. Teriam esse tratamento se fossem brancas e ricas? Não.

Sabemos que a violência patriarcal agride e mata mais meninas e mulheres negras e pobres, mas também sabemos que a justiça patriarcal e racista sempre protege os homens brancos e ricos. Vimos isso no caso de Mariana Ferrer, a jovem que, buscando justiça após um estupro, foi humilhada pelo advogado de defesa do agressor perante um juiz imóvel. As provas foram anuladas e o acusado foi mantido impune. As estruturas patriarcais atuam para manter a ordem desigual das coisas.

Outro caso explícito de misoginia patriarcal recente foi a violência vivida pela promotora Gabriela Monteiro de Barros, espancada por um colega de trabalho, Demétrius Oliveira Macedo. O caso ocorreu em Registro (SP). Gabriela tem registros dos machucados e ficou ensanguentada, e a brutalidade foi filmada no ato. Ainda assim, o delegado permitiu que o agressor saísse tranquilamente pela porta da frente no 1º Distrito Policial (DP) da cidade. A alegação do delegado é que o agressor não apresentava risco à sociedade. Quanto vale a vida de uma mulher?

Casos emblemáticos não nos faltam. Outro recente é o de Klara Castanho, atriz que sofreu um estupro, engravidou e decidiu entregar o bebê para a adoção legal. Também não esquecemos a história que veio à tona em agosto de 2021, de uma menina de 10 anos que engravidou após ser estuprada e que teve seu abortamento legal negado. No fim, por pressão das feministas, ela conseguiu realizar o procedimento em um hospital em Pernambuco. Enquanto as mulheres defendiam a vida da menina, a então Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, atuava criminosamente para impedir que a menina abortasse enquanto uma legião de fundamentalistas religiosos rezava e tentava invadir o hospital, aos gritos de “assassina” para a menina e a equipe médica, tudo para que ela não acessasse o seu direito.

As semelhanças desse caso com o da garota de Santa Catarina não são acidentais. Todas essas meninas e mulheres sofreram com ataques reacionários que ao fim diziam que suas vidas não valiam nada, que elas de alguma forma pediram pela violência e deveriam parir e cuidar em silêncio do fruto da violência sofrida. Nenhuma preocupação com a vida de uma criança gerada de forma indesejada, fruto de uma violência hedionda.

A misoginia é parte de um sistema de opressão

O machismo, o ódio às mulheres e o controle sobre seus corpos e vidas são parte estruturante do capitalismo, que só funciona entrelaçado com o patriarcado e o racismo, formando um mesmo sistema de exploração e de opressão. Por isso, as mulheres, especialmente as mulheres negras, são as mais exploradas e as que têm sua autonomia constantemente negada. Arcamos com todo trabalho doméstico e de cuidados, somos responsabilizadas pela contracepção, culpadas pela conduta criminosa de homens e impedidas de abortar, mesmo quando a lei nos garante esse direito.

A legalização do aborto é uma realidade em muitos países, especialmente no norte global. No entanto, o direito das mulheres está permanentemente ameaçado e em disputa. Exemplo disso é que acaba de passar nos Estados Unidos, onde a Suprema Corte retirou o direito constitucional ao aborto, que já estava em vigor há quase 50 anos. Já na América Latina, temos tido avanços importantes: as recentes conquistas na Colômbia, México e Argentina, que nos enchem de esperanças de que, no Brasil, logo possamos também ser reconhecidas como seres humanos, como donas de nosso próprio corpo.

Atualmente, no Brasil em que vivemos o sistema patriarcal do qual a misoginia é parte tem autorização e estímulo do bolsonarismo, que comete crimes na certeza da impunidade. O bolsonarismo vai além de Bolsonaro: é todo esse setor que o acompanha, carregando consigo ódio, exclusão, negacionismo e afirmação das desigualdades. Por isso, mais do que derrotar Bolsonaro, precisamos também derrotar o bolsonarismo. 

Nesse período eleitoral, Bolsonaro e seus aliados de muitas legendas têm falado abertamente contra o aborto nos meios de comunicação. Dizem defender a vida desde a concepção. Isso, na prática, quer dizer que uma mulher violada deverá levar a gestação até o final em nome de uma vida em potencial; deve cuidar da criança e permitir que o estuprador figure na certidão de nascimento. Que vida levará essa criança?

Já combatemos, no passado, a criação de uma lei que previa uma bolsa dada pelo Estado para as mulheres que mantivessem a gestação fruto de violência, a “bolsa estupro”. Também nos posicionamos contra a instauração do “dia do nascituro”, que é “comemorado” em vários municípios. Denunciamos a fantasiosa ideologia de gênero que, na prática, quer manter meninas e meninos alheios aos seus próprios corpos, sem defesa contra as investidas pedófilas, dada a falsa argumentação de que a educação sexual nas escolas induz as crianças a serem homossexuais ou transexuais, quando na verdade a educação sexual nas escolas apenas reconhece a sexualidade existente, acolhe e orienta. 

Seguimos na luta contra a hipocrisia conservadora e contra o controle patriarcal dos nossos corpos. Temos autonomia para decidir sobre nossas vidas. Queremos que o direito ao aborto legal e seguro seja expandido, não que ele seja negado mesmo nos casos nos quais já está previsto em lei.

Mudar o mundo e a vida das mulheres em um só movimento

Essa palavra de ordem cunhada pela Marcha Mundial das Mulheres é o desejo que move esse movimento feminista rumo a uma mudança real e radical da sociedade. Essa transformação não combina com palavras vazias de “mais mulheres na política” se não houver garantias de que elas possam disputar eleições em condições reais de serem eleitas, e, antes disso, de crescer e se desenvolver numa sociedade livre de violência, estudar, exercer sua sexualidade livremente, podendo escolher se querem ser mães ou não.

É fundamental enfrentar a realidade do aborto abertamente, sem falsos tabus, hipocrisia e moralismos. Bradamos em todas as manifestações, em todos os panfletos: “legalizar o aborto, direito ao nosso corpo!”

O aborto é uma realidade, é parte da vida das mulheres, provocado ou espontâneo. Por isso, é fundamental que as forças de esquerda, especialmente partidos em momentos eleitorais, possam dizer aberta e sinceramente que descriminalizar e legalizar o aborto é imperativo para que nós mulheres e meninas, possamos dar uma passo rumo à igualdade e a justiça.

*Maria Fernanda Marcelino é historiadora, integra a equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista e é militante da Marcha Mundial das Mulheres.

**A Coluna Sempreviva é publicada quinzenalmente às terças-feiras. Escrita pela equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, ela aborda temas do feminismo, da economia e da política no Brasil, na América Latina e no mundo. Leia outras colunas.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo