Entre os dias 18 a 27 de novembro recebemos as companheiras Sophie Dowllar, Michelle Kabucho e Anne Wanjiku (Quênia), Clara Armando (Moçambique), Rahima Hassan (Tanzânia), Kaouther Abbes (África do Sul). As mulheres vieram para uma série de atividades que culminaram na participação da delegação da Marcha Mundial das Mulheres Brasil na 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras que aconteceu em 25 de novembro em Brasília (DF) por “reparação e bem viver”.

No dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra e de Zumbi dos Palmares, as mulheres se juntaram à MMM de São Paulo no ato puxado pelas organizações do movimento negro. Já no dia 22 de novembro, a delegação esteve reunida junto as marchantes e mulheres da Frente de Luta por Moradia (FLM) na Ocupação da Av. 9 de Julho para uma roda de conversa e partilhas sobre vivências e conexões entre lutas das mulheres africanas e mulheres afrolatinoamericanas.  As mulheres compartilharam sobre os atravessamentos a partir da herança colonial, de como isso impactou e impacta ainda hoje a luta que precisamos travar, das mulheres negras no Brasil, Moçambique, Tanzânia, Quênia, África do Sul, e tantas outras partes do mundo.

As mulheres relataram ter sido uma experiência rica que proporcionou conexão entre resistências e desafios, mas também entre alternativas e esperanças. Nos sonhos de construção de um presente e um futuro em que as mulheres negras possam ser livres de toda a opressão, que haja acesso a moradia, educação, segurança, lazer, cultura, o bem viver para todas as pessoas e a natureza.

Fotos: Noelly Castro e Sophie Dowllar

Conversando sobre comunicação feminista popular e antirracista

No dia 23, o grupo se reuniu com as mulheres da SOF e da MMM São Paulo para um dia inteiro de formação sobre Comunicação feminista popular e antirracista. A atividade aconteceu na sede da SOF, e iniciou com um lindo momento de mística em memória de nossa saudosa companheira Nalu Faria. “Nalu significa muito para mulheres do mundo inteiro!”. A boneca trazida da África do Sul para o Brasil simboliza a conexão entre o passado e o presente, que nos conecta com nossas ancestrais.

Começamos o debate por refletir sobre o que temos de particularidades e o que temos de comum em nossas lutas nos territórios, levando em consideração de que uma arma do colonialismo é a imposição de histórias únicas sobre grupos inteiros. As mulheres destacaram as experiências de países que vivem sob governos autoritários que buscam controlar a narrativa, como a situação na Tanzânia segundo Rahima Hassan e Michelle Kabucho, onde mortes são perpetradas pelo Estado, a mídia internacional é banida e o acesso à informação é severamente limitado. A comunicação, portanto, torna-se um campo de batalha. A criatividade das mulheres é uma resposta: no Quênia, como relataram as companheiras, os protestos (“Manamano”) são divididos em grupos para confundir a polícia, usando até um aplicativo desenvolvido para isso. A organização via redes sociais digitais, como o Twitter, é uma realidade.

Ao mesmo tempo, a dependência da tecnologia traz riscos, como ressaltou Clara Armando. Em Moçambique quedas totais de internet durante protestos geram impotência e isolamento, especialmente para quem já tem acesso limitado. Moçambique tem uma das internet mais caras do mundo, e as mulheres são as mais afetadas pela exclusão digital. A pergunta que se impõe é: como comunicar com quem não está nas redes sociais digitais? Os movimentos usam grupos temáticos no WhatsApp, cultivam aliados na mídia tradicional e desenvolvem identidades visuais, como o uso específico da capulana (pano tradicional) em Moçambique. Marli Santos, de São Paulo também ressalto o vínculo entre racismo e democracia nas análises produzidas pela mídia hegemônica no Brasil no caso da violência estatal nas periferias, com chacinas e repressão direta, que nega qualquer liberdade de expressão de determinados territórios.

É por isso que na Marcha Mundial das Mulheres a comunicação feminista popular se dá nas “ruas, redes e roçados” e tem no digital um desdobramento das dinâmicas dos territórios onde as lutas e organização das mulheres acontece. A batucada feminista, como citou Sophie Dowllar, foi inspirada no Brasil e adaptada com ritmos e cantos locais no Quênia e em Moçambique, é um exemplo de ferramenta cultural poderosa e intergeracional, como destacou Renata Reis de Diadema. Ortencia Rojas, de São Paulo, definiu o ato de “bater na lata” como um símbolo de libertação coletiva. Marli Santos mencionou também os saraus nas periferias como espaços vitais para denúncia e fortalecimento. Essas práticas ressaltam que a comunicação precisa ser contextual e desafiar as lógicas individualizantes que imperam nas plataformas corporativas de redes sociais digitais.

Sophie retomou a experiência de comunicação e solidariedade internacional na 3ª Ação da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) no Congo em 2010. Hoje, com crises graves no Congo e no Sudão, o desafio é como apoiar sem expor as companheiras a mais perigo. Kawther Abbes da África do Sul também reforçou a crítica, afirmando que as mídias alternativas precisam dar mais espaço às narrativas da África e do Oriente Médio, citando exemplos como a crise no Sudão e a xenofobia na África do Sul, que ela identifica como uma forma de colonização.

Feminismo popular antirracista para enfrentar os monopólios do capitalismo digital

A partir do olhar para o que temos em comum e o que temos de desafios específicos nos territórios, o debate foi direcionado para olharmos juntas para o tema das infraestruturas de comunicação digital no capitalismo neoliberal atualmente. Miramos juntas um mapa das infraestruturas de cabos submarinos, que escancara o que temos afirmado: tudo que é digital tem uma base material.

A partir deste mapa, as mulheres foram acrescentando outros elementos para analisarmos as lógicas de controle e dependência. As ferramentas digitais, especialmente as redes sociais corporativas, são analisadas como instrumentos de controle que ao mesmo tempo podem auxiliar, também precarizam as formas de mobilização e colocam outros desafios para a auto organização das mulheres. Elas geram dependência e, de forma mais ampla, os dados coletados por corporações transnacionais e Estados têm o poder de definir políticas que controlam a vida e a morte, como em testes nucleares ou guerras.Por isso entendemos no feminismo popular da MMM que apropriar-nos das infraestruturas tecnológicas nos ajudam a construir as nossas próprias. Isso significa desenvolver ferramentas de comunicação autônomas e seguras.

Para construir uma síntese coletiva do dia, Miriam Nobre propôs mais alguns elementos de reflexão sobre as resistências feministas frente às dinâmicas coloniais do capitalismo digital. O colonialismo digital se baseia na extração de recursos naturais e trabalhos do Sul Global para produzir tecnologia, para onde também retorna com o despejo do lixo eletrônico. Ele opera um paradoxo: a hipervisibilidade seletiva e a invisibilidade forçada. Algoritmos de reconhecimento facial frequentemente falham com rostos de mulheres negras retintas, como já ouvimos relatos de companheiras agricultoras, mas são usados para o encarceramento em massa da população negra. As corporações e os Estados usam a inteligência artificial para processar os dados que entregamos, capturando nossa subjetividade e até apropriando-se da linguagem crítica para esvaziá-la de sentido, como vemos com a mídia hegemônica.

Por isso nossa resistência exige descolonizar simultaneamente nossos corpos e nossos territórios. Organizar a partir da vivência e da “escrevivência”, fortalecendo processos coletivos como na Marcha Mundial das Mulheres (MMM). Em meio a revoltas sociais lideradas por uma juventude conectada, como temos visto em vários países do Sul global, é crucial construir análises coletivas profundas, indo além da comunicação instantânea. A escuta ativa das mulheres em zonas de conflito, como no Congo, Colômbia e Turquia, requer presença física para atravessar barreiras de isolamento.

Entendemos que o feminismo decolonial e popular propõe uma relação diferente entre o individual e o coletivo, opondo-se às soluções liberais individualistas. Ele se constrói na reverência às ancestrais, às do presente e às do futuro, articulando comunicação, organização e formação como um processo integrado de libertação.

Fotos: Noelly Castro e Gaelle Scuiller

MMM na 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras 2025

Na segunda-feira (24/11) as marchantes internacionais e de São Paulo pegaram a estrada sentido Brasília, e se juntaram à companheiras de mais 17 territórios para marcharem por reparação e bem viver.

Após 10 anos da sua primeira edição, as mulheres negras da MMM demonstraram a força e a beleza da luta do  feminismo popular antirracista, marcando presença com seus corpos,  cantos e vozes unidas a de centenas de milhares de mulheres que lutam para mudar o mundo e a vida das mulheres em um só movimento!

Fotos: Noelly Castro, Sophie Dowllar e Kawthar Abbes