Por Sonia Coelho*, originalmente publicado no Brasil de Fato

A lei Maria da Penha, criada e promulgada com o objetivo de coibir e prevenir a violência contra a mulher, completa 15 anos de existência neste mês de agosto. Nesse mesmo mês, a Casa Eliane de Grammont, em São Paulo, uma referência no atendimento e prevenção da violência, sofre tentativas de terceirização.

A lei Maria da Penha foi importante para desnaturalizar a violência contra as mulheres: combater a noção de que a violência é algo normal das relações pessoais e privadas, e colocá-la no centro do debate público. O Estado precisa reconhecer sua responsabilidade e responder de maneira integral, do ponto de vista da punição, da prevenção e da proteção das mulheres em situação de violência.

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Nos últimos anos, sobretudo de 2015 para cá, temos visto crescer o número de denúncias de violência. O Ligue 180, canal do governo federal, registrou 105 mil denúncias em 2020. No estado de São Paulo, pelo número 190, as denúncias aumentaram cerca de 46%. Sabemos, ainda, que estes números são subnotificados, porque grande parte das mulheres que sofrem violência não registram as denúncias, por medo, dependência financeira, entre muitas outras questões que refletem a extensão da violência contra a mulher na sociedade.

Nesses 15 anos, o movimento de mulheres tem denunciado e lutado contra a precariedade na implementação da lei Maria da Penha. Um dos aspectos mais importantes da lei é a prevenção, pois ela prevê campanhas educativas e a implementação de políticas públicas articuladas que garantam assistência e proteção para a superação da violência.

No Congresso Nacional, há centenas de projetos para alterar a lei Maria da penha, principalmente no que tange a aumento de penas. Apesar da impunidade em relação à violência contra as mulheres, aumentar penas não resolve a questão. Apesar desses 15 anos, ainda nos falta avançar muito, pois para enfrentar a violência são necessárias transformações das condições materiais desiguais que vivem as mulheres.

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Para construir uma sociedade livre de violências é fundamental atuar antes que a violência aconteça. Por isso, a importância de políticas públicas e ações governamentais que promovam a igualdade entre homens e mulheres e também entre as mulheres brancas, negras e indígenas. Também a atuação desde a infância, principalmente no âmbito escolar, é fundamental para que as relações desiguais de gênero, raça, orientação sexual sejam questionadas, transformadas e não se perpetuem nas raízes de relações violentas.


Ato em frente ao Congresso cobra medidas no combate à violência contra mulher / Lula Marques

Auto-organização

A Marcha Mundial das Mulheres tem incentivado a auto-organização das mulheres como estratégia fundamental para fazer a luta por uma sociedade livre de violências. As leis sozinhas são insuficientes para as mudanças necessárias na sociedade. Vivemos sob um sistema neoliberal que se alimenta das violências.

O neoliberalismo tem em sua essência e estratégia fundamental a destruição do estado como indutor da economia e das políticas públicas, o que fortalece as relações desiguais e reforça o sistema patriarcal, racista e classista. O capitalismo sempre necessitou da violência como instrumento de controle da classe trabalhadora, das mulheres, das pessoas negras. Esse controle é parte do processo de acumulação desenfreada do capital, necessária para sua manutenção enquanto modelo.

Agora vivemos a pauperização e precarização da vida, impulsionadas pelos governos Temer e Bolsonaro, e que se aprofundam ainda mais com a pandemia. Em nossa sociedade, a divisão sexual do trabalho é muito viva, e faz parecer que o homem é sempre o provedor enquanto as mulheres são as responsáveis pela reprodução da vida, exercendo do trabalho doméstico e de cuidado. Em um momento como esse, de desemprego e queda de renda, mesmo que o maior desemprego seja justamente entre mulheres e negras, os homens se sentem afetados em sua condição de provedor do lar e, muitas vezes, a resposta a isso é o aumento da violência doméstica. A própria responsabilidade exclusiva das mulheres sobre o trabalho doméstico em condições tão precárias ajuda a criar as condições possíveis para um ambiente também violento, uma vez que recaem sobre elas a culpa pela dificuldade da habitabilidade da casa.

Quando estamos nas campanhas de solidariedade nas periferias, é comum mulheres se aproximarem e nos contarem não ter alimentos em casa, que estão pedindo apoio para as vizinhas. Não é comum, porém, a aproximação dos homens para solicitar uma cesta de alimentos para si ou para a família. Há casos de homens que chegam e alegam que estão ali para buscar a cesta para a esposa: “minha mulher não pôde vir”. A precariedade da vida é parte da explicação do aumento da violência principalmente entre as mulheres negras e pobres da periferia. A causa profunda da violência contra a mulher está no machismo e no racismo estruturantes da sociedade brasileira.


Movimentos feministas e de mulheres promovem campanhas com objetivo de dar visibilidade aos canais de denúncias de violência doméstica / Divulgação

O desmonte das politicas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres

Desde o golpe ocorrido contra a presidenta Dilma, estamos vendo o desmonte do estado brasileiro e das políticas públicas e sociais. Desde a promulgação da lei Maria da Penha, o Estado brasileiro vinha, mesmo que de forma lenta, buscando construir políticas de enfrentamento à violência, que passava pelo Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência e o programa Viver Sem Violência. Ambos buscavam incentivar e interpelar estados e municípios para que criassem organismos de políticas para as mulheres e propusessem e implantassem políticas públicas, com liberação de recursos públicos para municípios, estados, movimentos e entidades da sociedade civil que atuam no combate a violência.

O programa Viver Sem Violência previa, como projeto experimental, uma Casa da Mulher Brasileira em cada um dos estados e do Distrito Federal. Em São Paulo, mesmo sendo um equipamento inteiramente construído com verbas federais, o governo Dória abandonou o projeto. A Marcha Mundial das Mulheres e outros movimentos tiveram que fazer uma ação de resistência ocupando a casa para abrir uma negociação pela retomada do projeto pela prefeitura. A inauguração da casa foi no final de 2019, sendo um dos poucos equipamentos que funcionaram presencialmente e por 24 horas durante a pandemia. Isso mostra a importância dos movimentos organizados para que as politicas possam ser, de fato, implementadas.

Não há politicas públicas sem investimento de recursos públicos

O governo ultra neoliberal e genocida de Bolsonaro apresentou neste ano um orçamento para as políticas para as mulheres 19% menor que o ano passado. Em 2020, por um esforço da bancada feminina no Congresso, várias emendas parlamentares foram direcionadas às politicas de enfrentamento à violência. Ainda assim, o estudo sobre execução orçamentária “Um país sufocado – balanço geral da União” organizado pelo INESC, revelou que o Ministério da Mulher, Família e Diretos Humanos (pasta onde está alocada a Secretaria de Políticas para Mulheres) deixou de gastar 70% do que havia sido autorizado. Inclusive, vale observar que as politicas de enfrentamento à violência não se restringem a politicas específicas, mas a um conjunto de politicas que incide na construção de igualdade, de autonomia pessoal e econômica, e que deveria ser implantada em todos os ministérios.


Ao abrir debate sobre a construção da notícia de feminicídios, jornalistas propõem formas de contar essas histórias sem que a vítima seja culpabilizada e revitimizada na narrativa / Foto: Divulgação

Em São Paulo, com os governos de Dória, Covas e agora Ricardo Nunes, não há muita diferença em relação ao governo federal quando se fala em desmonte do estado. Ao invés de privatização, usam o termo “desestatização”, com o velho discurso da modernidade, e seguem as diretrizes ultraneoliberais de destruição dos serviços públicos e dos direitos de servidoras/es públicas/os, tal como propõe a reforma administrativa da PEC 32.

A última novidade em relação aos equipamentos de atendimento às mulheres em situação de violência é a proposta da prefeitura de terceirização dos poucos serviços de administração direta, como a Casa Eliane de Grammont, a Casa Brasilândia e o CRM Capão Redondo.

A casa Eliane de Grammont é um centro de referência em atendimento a mulheres em situação de violência. Criada em 1990, é fruto da luta do movimento de mulheres na gestão democrática do governo do PT. Este foi um dos primeiros equipamentos de atendimento e prevenção construídos no Brasil e se tornou referência local e nacional.

Para propor a terceirização, a prefeitura fez um processo de sucateamento, isso é, deixou de investir nos equipamentos para justificar a terceirização. Na Brasilândia, uma das regiões mais violentas da cidade, o CRM está contando com apenas uma profissional para atendimento. Na Casa Eliane de Grammont, cada funcionária pública que se aposenta não é substituída, ocasionando o esvaziamento de servidoras e sobrecarga para quem fica.

Em relação às casas de atendimento conveniadas – que são várias nas periferias da cidade – e também à Casa de Passagem Rosângela Rigo, na zona norte, a prefeitura propõe editais diminuindo o valor dos contratos. Enquanto a violência em São Paulo cresce, o prefeito diminui os recursos. É um verdadeiro atentado aos direitos de todas as mulheres.

Nossa luta pela vida das mulheres é a luta por Fora Bolsonaro e é a luta local de enfrentamento ao projeto ultraneoliberal aplicado pelo governo de São Paulo. Só a luta muda a vida. Por isso, no dia 18 de agosto, nos somaremos à luta contra as privatizações e, no dia 7 de setembro, estaremos nas ruas reforçando: Fora Bolsonaro genocida!    

*Sonia Coelho é assistente social, militante da Marcha Mundial das Mulheres e integrante da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista.