Por Miriam Nobre publicado originalmente na Coluna Sempreviva do Brasil de Fato

Quando eu vejo o rosto da Marielle pintado em um muro, uma emoção me atravessa o corpo. Eu sinto as inúmeras possibilidades que arrancamos da vida e como elas podem ser cortadas por um ato de violência.  

Sinto que somos todas Marielle ao mesmo tempo em que a sinto como única. Entendo o que ela dizia: “eu sou porque nós somos”, forjada na combinação de ser mulher, negra, mãe solo, lésbica e mareense. Por mais aterros que fossem feitos, por mais complexo que seja esse território de pescadores, migrantes, pessoas removidas de outras áreas, quem pisa por ali ainda deve sentir o movimento das marés na beira da Baía de Guanabara.  

Marielle nos lembra que, em muitas comunidades africanas, suas diásporas e descendentes, não se percebe o indivíduo separado de sua comunidade e território. Quando saudamos uma pessoa singular, saudamos as que vieram antes, as que virão e a natureza que as compõe e abraça. 

Quem conhece as marés sabe os momentos de avançar; sabe também que em terra firme é preciso andar a passos largos quando mudamos a correlação de forças a nosso favor. É por isso que, neste quinto ano sem Marielle, aumentam nossas esperanças de que a justiça seja feita, com a denúncia e a punição dos mandantes e com transparência sobre suas motivações. A jornalista Bianca Santana demonstrou, no livro Arruda e guiné: resistência negra no Brasil contemporâneo, os fios que conectam este crime à família Bolsonaro. Uma semana depois de ter publicado um artigo sobre isso foi citada numa live por Jair Bolsonaro, como um alerta para constrangê-la. Chegar a possíveis mandantes tão poderosos é muita coisa. Mas precisamos de mais. 

Precisamos que a justiça para Marielle seja o começo do fim do poder das milícias. O começo do fim dessa economia política de controle sobre os territórios pelo terror. Isso é especialmente necessário quando nos damos conta do aumento de milícias privadas atuando em conflitos armados ao redor do mundo, contratadas por governos nacionais em negociações que envolvem a entrega de territórios, extração mineral e da natureza. Se não pararmos as milícias, elas podem exportar seu método de controle e ampliar seus negócios e poder. Instalam o medo e vendem “proteção”.  

As mulheres que vivem nesses territórios controlados têm muito a contar sobre os mecanismos utilizados para limitar seu comportamento e movimento no espaço-tempo. Mas já vislumbramos um tempo em que não precisaremos avisar ou pedir permissão para os senhores da guerra locais para que possamos nos reunir; um tempo em que não teremos que aceitar uma aparente segurança, supostamente organizada para nós, mas sem nós.   

Marielle nos ensinou que tentam “reduzir a favela a três letras” com as chamadas UPP. Ela nos relembra a história de sucessivos e concomitantes controles da Maré pelo exército, fundações de reassentamento, crime organizado, polícia. E apesar de tudo isso, ela nos fala da possibilidade de que a soberania popular seja a dona do pedaço. 

O controle sobre o território pode começar no seu próprio desenho. Grilagem de terrenos, desmatamento, construções ilegais e frágeis que desabam e já causaram dezenas de mortes compõem uma das áreas de negócios da milícia. Uma das linhas de investigação aponta que Marielle poderia afetar estes negócios. As milícias “planejam” os territórios e movem as pessoas que os ocupam como barreira humana para proteger os negócios da guerra, como mão de obra descartável. Cada vez é mais evidente a falta de sentido nos discursos que responsabilizam as famílias individualmente por morarem em áreas de risco. 

A jornalista Mariana Belmont tem publicado uma série de artigos sobre o racismo ambiental e sobre como ele se manifestou na recente tragédia no litoral norte de São Paulo3. A expressão “racismo ambiental” foi cunhada por militantes do movimento negro estadunidense que denunciavam como os dejetos tóxicos da produção capitalista eram desproporcionalmente concentrados em territórios onde vivem comunidades negras e indígenas. Aqui no Brasil, Mariana Belmont escreveu sobre como as construções em áreas declivosas necessitam de terraplanagens e estruturas de sustentação, que são utilizadas nos bairros e casas dos ricos e negadas às pessoas pobres, obrigadas a se instalar no “subproduto do mercado de terras”. As pessoas moradoras dos morros do litoral norte de São Paulo são, na maioria, migrantes, muitos de primeira geração, que chegam para trabalhar na construção civil ou nos serviços domésticos.  

A natureza está sempre corroendo as casas de veraneio na beira do mar. O mato cresce em volta, tentando retomar o território que caiçaras, guaranis, tupis e quilombolas atravessavam continuamente. Para manter a ordem da civilização das casas de veraneio ocupadas poucos meses no ano, é preciso de alguém que cuide do jardim, da limpeza. Esses alguéns não serão as pessoas proprietárias, que muito possivelmente não limpam nem a casa onde moram; serão pessoas contratadas, disponíveis para que as proprietárias não façam nada, nem quando estão por lá.  

As pessoas caiçaras que já tiveram seus territórios tomados e seus caminhos cortados vão inventar o que puderem para fugir de mais essa humilhação. E, por isso, os brancos, proprietários, vão escrever no dicionário que uma das definições de caiçara é “vagabundo”. Eles precisam colocar as pessoas numa situação de vulnerabilidade grande o suficiente para lhes impor longas jornadas e disponibilidade permanente. E ainda esperam não ter que se ocupar em como se reproduzem como pessoas e comunidades. Esperam que venham na estação de maior demanda de trabalho e retornem para suas regiões de origem quando há menos trabalho, ou seja, quando são descartáveis. 

Ao organizar o cercamento e controle sobre os territórios e as pessoas (consideradas somente como mão de obra), o racismo aproxima a Maré, o litoral norte de São Paulo e tantos outros territórios brasileiros. E, assim como o mato que insiste em nascer em cada rachadura no cimento, em todos esses territórios as pessoas mantêm, criam e recriam espaços de liberdade. Marielle floresceu em espaços de liberdade instaurados na Maré, se expandiu e tornou melhor a universidade, o parlamento. Marielle é semente, dessas aladas, que vão muito longe.  

Em 2018, um mês depois de seu assassinato, 700 famílias organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocuparam uma fazenda improdutiva em Valinhos, no interior de São Paulo, e começaram o território livre “Marielle Vive”. Elas pararam a monocultura de muros de condomínio que se expandem para as áreas rurais da região. Elas pararam a ordem de que trabalhador só pode estar por perto se for para trabalhar nos serviços domésticos, os homens de segurança, motorista ou jardineiro, as mulheres de cozinheira, faxineira ou babá. No acampamento Marielle Vive, plantaram uma horta mandala de mais de 20 metros, cheia de comida, que alimenta as 450 famílias que vivem por lá. Elas desenharam outra paisagem: um lugar que tem muito trabalho, muitos amigos, muita festa, muitas possibilidades – até mesmo de cuidar da segurança do território de outros jeitos, com mais atenção e compartilhamento. :: Caso Marielle: ‘Minha mãe deve ser lembrada pela trajetória, e não pelo crime sem resposta’ ::

Defender as condições materiais e subjetivas que permitiram que Marielle florescesse, frutificasse, dispersasse sementes segue sendo tarefa de todas. Sua história, de tão singular, se torna universal. Seu rosto, sorrindo, estampado na parede, de olho no que se conversa, se decide e se aprende no acampamento Marielle Vive nos faz lembrar quem somos e qual é a nossa batalha.  

*Miriam Nobre é agrônoma, integra a equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista e é militante da Marcha Mundial das Mulheres. Agradecimentos a Alessandra Ceregatti pelas conversas sobre a realidade do litoral norte de São Paulo e a Sheyla Saori sobre o acampamento Marielle Vive.