O artigo “A centralidade da vida humana na construção de outro modelo de sociedade”, de autoria de Nalu Faria, da Marcha Mundial das Mulheres e da SOF, apresenta o tema sob uma perspectiva feminista, acentuando a importância de se colocar a vida humana no centro de um novo modelo de sociedade e de se reconhecer a ligação entre produção e reprodução. O artigo compõe a revista Perspectivas: América Latina, produzida pela Fundação Heinrich Böll Stiftung.

 

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Este artigo aborda, a partir de uma análise feminista, alguns conceitos chaves para se pensar mudanças no atual modelo capitalista patriarcal extrativista para se buscar mudanças que recoloque a centralidade da vida humana, desde um ponto de vista de relações harmoniosas entre seres humanas e deles com a natureza.

Tanto na América Latina como em outras partes do planeta, as mulheres sempre lutaram contra as injustiças e marginalização que vivem em função do patriarcado. Foram as defensoras mais aguerridas das culturas comunais, ameaçadas pela colonização europeia que foi um marco da estruturação do modelo extrativista em nossa região. Uma perspectiva feminista para analisar os (bens) comuns começa com o reconhecimento de que as mulheres como sujeitos principais do trabalho reprodutivo, tanto no passado como atualmente, dependem mais que os homens do acesso aos bens comuns, e estão mais comprometidas em sua defesa (Silvia Frederici, 2014).

Em geral o senso comum e mesmo algumas abordagens teóricas e políticas tendem a analisar esse fato como algo decorrente da maternidade e da gestação. Consideram parte de uma essência feminina e que portanto tornaria as mulheres mais próximas da natureza. No entanto, a abordagem feminista de caráter sócio construtivista situa as relações das mulheres com a natureza a partir do seu lugar na divisão social e sexual do trabalho e sua atribuição quase como as responsáveis exclusivas pelo trabalho de cuidado e sustentabilidade da vida humana. Assim como considera que a crise ecológica é decorrente das premissas andro e antropocêntricas que organizam a sociedade patriarcal.

O capitalismo se desenvolveu a custo da exploração da natureza e da apropriação dos tempos das pessoas para que estivessem a serviço do mercado. Como afirma Yayo Herrero “entre a sustentabilidade da vida humana e o benefício econômico, nossas sociedades capitalistas patriarcais optaram pelo segundo” (Yayo Herrero, 2011).

A questão da centralidade da vida humana para organizar o modelo de sociedade, bem como o questionamento do caráter androcêntrico do pensamento ocidental, é parte fundamental tanto da economia feminista como do ecofeminismo. A divisão sexual do trabalho torna as mulheres responsáveis pela reprodução como parte de seu destino por serem mães. Para isso estabelece uma falsa separação entre produção e reprodução que permite ocultar o nexo econômico entre elas. Apenas o trabalho e atividades que têm valor de mercado são econômicos e as atividades necessárias cotidianamente para a sobrevivência das pessoas não são considerados como econômicos, restringido trabalho e economia ao mercantil. Dessa forma o trabalho doméstico e de cuidados juntamente com a natureza são tratados como uma externalidade do modelo econômico e considerados recursos inesgotáveis para a exploração capitalista. O trabalho das mulheres é a variável de ajuste entre as lógicas e tempos contraditórios do mercado movido pelos lucros e do cuidado da vida humana que exige trabalho e disponibilidade permanente de inúmeras mulheres, para responder às necessidades básicas das pessoas, de se alimentarem, compartilharem afetos, se sentirem seguras.

As mulheres estiveram de forma mais ampla inseridas em relações não mercantis desenvolvendo práticas de redistribuição, complementariedade e solidariedade. Isso faz parte do que implica o trabalho de cuidados e a realização de tarefas para suprir necessidades biológicas, mas também na relação afetiva, na preocupação permanente com o bem estar . Essa experiência promove uma relação menos marcada pelo mercado que não pode satisfazer todas as necessidades humanas. Assim como grande parte do que fazem está fora do mercado, o processo de mercantilização dificulta o exercício de suas atividades. A entrada do mercado e das grandes empresas redefinem as relações de poder nos territórios: desvalorizam seus conhecimentos, aprofundam a exploração capitalista e dominação patriarcais como a violência, a prostituição, a migração forçada. Essa realidade faz com que há uma desconfiança da entrada do mercado nos territórios e por isso nos processos de ocupação dos territórios é visível uma maior resistência das mulheres que decorre do fato que reconhecem a relação dos territórios com seus meios de produção da vida. Então são as que mais resistiram a chegada das empresas nos seus territórios ou ao serem marginalizadas do processo da revolução verde mantiveram suas práticas agrícolas tradicionais mesmo que isso tenha significado que sua produção ficasse restrita ao quintal, a horta, ao pomar e a criação de pequenos animais. Nas cidades são as que lutam pelo estabelecimento de serviços públicos, que desenvolvem experiências de coletivização do trabalho doméstico.

A construção de alternativas

O ponto de partida é justamente que não é possível afrontar as relações e práticas sociais produzidas nesse modelo sem uma perspectiva antissistêmica. O momento atual tem tido muitas caracterizações que incorpora uma percepção da intensificação da exploração dos bens comuns como ultima fronteira, associado a um processo de precarização do trabalho e crescimento do conservadorismo. Várias denominações são feitas a esse momento. Silvia Frederici fala de um novo processo de acumulação primitiva, David Harvey de acumulação por despossessão. O acaparamento de terras se expandiu sobretudo na África, Ásia e América Latina para o mono cultivo de alimentos ou de agrocombustíveis para exportação. As áreas urbanas passaram por um novo ciclo de especulação imobiliária, inclusive com a construção de grandes obras relacionadas à megaeventos. As companhias mineradoras ampliam as áreas de prospecção e mineração a céu aberto. Seguem provocando a contaminação da água, superexplorando o trabalho e estão no coração dos conflitos armados.

Portanto há que dizer não às propostas que denominamos de falsas soluções, baseadas em eficiência, eficácia tecnológica e mais mercantilização como é o exemplo da economia verde.

Os desafios são portanto construir essas alternativas antissistêmicas que implica a recuperação dos bens comuns por um lado e a mudança do paradigma de sustentabilidade da vida humana que ao colocar a vida e o bem estar como objetivo, reconheça a centralidade do trabalho de cuidados e a necessidade de construir relações igualitárias entres os humanos e as humanas e estabelecer harmonia com a natureza. Isso evidentemente implica o reconhecimento da interdependência entre os seres humanos e entre esses e a natureza. Para tanto, há o desafio de colocar em debate um novo modelo de reprodução que esteja inter relacionado com a reprodução e que possa estabelecer outros marcos. As definições são sobre: o quê, como, para quê e para quem produzir. Como organizar a reprodução não como algo exclusivo das mulheres mas que esteja no centro do modelo econômico que coloque a sustentabilidade da vida como central? Como aborda Renata Moreno (2013), a politização feminista da relação com o corpo como construção da autonomia das mulheres e a centralidade do cuidado com a vida e natureza produzem convergências políticas capazes de construir outro paradigma de sustentabilidade da vida baseado na igualdade.

Consideramos que é fundamental atuar para estabelecer um processo de transição para o novo modelo, que inclusive contribua para a construção solidificar uma visão hegemônica por mudanças profundas. A transição coloca urgências em relação a regular e limitar o extrativismo e ampliar a desmercantilização da vida. Isso implica em rapidamente mudanças na produção como por exemplo, transporte coletivo em substituição ao individual, agroecologia ao invés agricultura industrial, mudar a durabilidade dos produtos contrapondo a estratégia da obsolência programada, políticas para o cuidado e reorganização de espaços que promovam ações coletivas e comunitárias e promover a cultura da suficiência.

As atuais resistências a ocupação dos territórios protagonizadas pelas mulheres não estão separadas da construção de alternativas e de recuperação dos bens comuns, dos conhecimentos ancestrais e de construção de relações de solidariedade e reciprocidade São exemplos a agroecologia e a economia solidária. Mas também as hortas urbanas em várias partes do mundo. As mulheres do povo Lenka em Honduras que expulsam as transnacionais de seus territórios, recuperam terras e exercem experiências de propriedade coletivas em nome das mulheres. No Peru há uma resistência incansável das mulheres frente as empresas mineiras, tal como suas ancestrais que frente as ameaças da colonização espanhola escaparam para as montanhas onde recriaram modos de vida coletivos que sobrevivem até hoje (Silvia Frederici, 2014).

Muitas comunidades que já sofreram com a monocultura hoje estão organizadas para resistir à mineração como é o caso da região norte de Minas Gerais no Brasil nas comunidades vizinhas do Riacho dos Machados. As mulheres quilombolas e trabalhadoras rurais estão se organizando para deter o avanço da mineração depois de terem construído experiências agroecológicas em resposta ao empobrecimento pela devastação que as comunidades sofreram com a monocultura do algodão. Essa reconstrução se deu graças a políticas públicas e articulação dos movimentos que garantiu o acesso a água por meio de cisternas para captação de água da chuva. Por isso a disputa central com o projeto da mineração se refere ao controle da água. Processo se assimila ao de uma região de Apodi no semi-árido nordestino no Rio Grande do Norte, com a forte resistência das mulheres a implantação de um projeto de hidro negócio baseado no mono cultivo de frutas.

Outras experiências se referem à construção de hortas urbanas, que se dá em varios lugares do mundo, inclusive Nova Iorque, e que, além de contribuir para a produção de alimentos, são também espaços de socialização, construção de relações de solidariedade e reciprocidade.

Por fim, o desafio é ter força social e políticas para colocar em prática a construção de alternativas e um processo de transição a outro modelo. Portanto, hegemonizar essa visão a partir de um processo político e de articulação de pensamento crítico e mobilização por projetos de transformação. De um lado, sabemos que do poder e força dos setores conservadores. E de outro, temos os desafios internos aos movimentos sociais e setores progressistas, em particular de ter capacidade de construir uma visão integral da luta que incorpore as várias dimensões da opressão. Será isso que possibilitará construir um sentido comum e de unidade que passa por incorporar os vários sujeitos políticos. E também um projeto político que seja de fato anticapitalista, antirracista, anticolonialista, antipatriarcal e ecologista. Só a partir dessa construção é que seremos capazes de hegemonizar na sociedade essa visão de transformação radical.