Por Renata Reis* originalmente no Brasil de Fato
A paisagem muda onde há mulheres realizando práticas agroecológicas e cultivando seus modos de vida. Da mesma maneira, as mulheres mudam os cenários políticos e transformam as realidades onde lutam e se organizam coletivamente por uma vida comunitária onde esta se posiciona no centro.
Os espaços de formação política geram frutos importantes para tensionar a relação capital-vida. Neles, somos apresentadas a inúmeros aprendizados a partir da construção conjunta do feminismo popular e da agroecologia. Intercâmbios, cuidado mútuo e trocas de experiências são algumas das ações realizadas pelas mulheres que praticam a agroecologia. A relação que elas estabelecem com a natureza passa pelo exercício de conhecer plantas novas e cultivá-las por perto, de realizar troca de sementes com suas companheiras e parentes e de investigar e experimentar a diversidade existente na natureza. Essas são algumas características do processo de politizar as relações sociais assumindo uma perspectiva feminista e antirracista.
Trocando e espalhando sementes
A primeira etapa do curso de feminismo e agroecologia Sementeira Feminista teve como base temas sugeridos pela Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras de Barra do Turvo, a RAMA. Refletimos sobre como funcionam as nossas comunidades, os cuidados com os nossos corpos e nossa sexualidade, sobre os recursos necessários para nos proteger da violência contra as mulheres e a nossa construção do feminismo.
O território também foi incluído nos debates. Em Iporanga, no Vale do Ribeira, em São Paulo, local onde o curso foi realizado, as comunidades quilombolas e caboclas resistem à privatização que ameaça a existência de seus territórios. As companheiras que participam na luta local nos apresentaram suas histórias, os conflitos e as resistências protagonizadas pelas comunidades. Nessa conversa, expandimos nossa percepção sobre as armadilhas e repensamos as possibilidades de resistência em nossas articulações. De forma parecida, quando trocamos sementes, fortalecemos nossas relações e assumimos um compromisso com a continuidade da biodiversidade.
Utilizamos diversas ferramentas para conversarmos sobre os temas do curso. Ao desenharmos nossas comunidades e posicionar onde as mulheres e os homens se localizam, foi possível dimensionar os desafios postos para as mulheres pela divisão sexual do trabalho. As mulheres apareceram em quase todos os lugares realizando trabalhos diversos, seja dentro de casa, na horta, na roça ou nos espaços comuns, enquanto os homens se concentram na roça e nos espaços de lazer, sendo esse último pouco frequentado pelas mulheres. Esse exercício nos permitiu desnaturalizar a ideia de que as mulheres pouco ou nada colaboram com o sustento da família, assim como a necessidade de ocupar e criar mais espaços em que as mulheres circulem com mais liberdade.
Acolher a diversidade e entender que sem ela a vida não existe é um ensinamento comum nos roçados e hortas onde há mulheres fazendo agroecologia. Somos diferentes e por isso podemos nos cuidar, pois dependemos umas das outras e da natureza – e somos natureza. Durante o curso tivemos a oportunidade de conhecer mais sobre as plantas medicinais, a relação delas com os nossos corpos, assim como falar sobre os assuntos velados relacionados com a nossa sexualidade. Reconhecer as violências e nomeá-las também fez parte dos nossos aprendizados. Elaboramos estratégias coletivas para nos defendermos e compartilharmos entre nós com a ferramenta “foto viva”, que consiste em posicionarmos nossos corpos como numa foto.
A formação política também é um espaço de criação, um espaço de experimento. É um exercício para refletirmos juntas sobre nossas condições, assumindo nossas diferenças e conflitos. O espaço de reflexão coletiva é um momento para estranharmos os comandos que parecem imutáveis. Adubamos esses processos com a educação popular e compreendemos que espaços de reflexão também são lugar de ação política e prática feminista. Como parte da avaliação da primeira etapa do curso, realizamos um poema coletivo chamado “Sementeira Feminista”, cada agricultora contribuiu com pelo menos um verso. Destacamos um trecho:
Sempre os grandão quer colocar a ordem deles,
eu achava que era só lá, mas eles querem pegar todos os territórios para eles.
Não é bom ficar guardando mágoa
É bom falar sobre o feminismo
Eu me senti acolhida,
pretendo vir mais vezes
Eu fui falando mais
Estou admirativa pela força do coletivo
Nos tornando visíveis
A diversidade é nosso princípio durante e depois das formações, levando a continuidades diferentes para as formulações feitas em conjunto. Nesses caminhos, a comunicação feminista e popular também se faz junto, pois a compreensão de que somos todas comunicadoras guia a aliança feita entre as mulheres para a multiplicação dos conhecimentos e das lutas coletivas. Como continuidade do curso, as participantes tiveram a tarefa escolher um dos assuntos mais importantes para semear entre as agricultoras que não estavam presentes. Algumas atividades já foram realizadas e outras ainda estão em processo de organização, assim como a cartilha Sementeira Feminista. Esse material tem como objetivo reunir conteúdos e propostas de atividades para desenvolver os temas abordados nesse curso.
O fortalecimento das mulheres está intimamente conectado com o sentimento de ser visível, de perceber sua presença como importante, de articular-se com outras e ser decisiva para transformações sociais. Essa experiência contribuiu a dar eco ao mote “sem feminismo não há agroecologia”,afirmado pelo Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (GT Mulheres da ANA). Construir mobilizações que avançam nas conquistas das mulheres em suas comunidades, são reverberações do processo contínuo de consciência política. A segunda etapa do curso ocorrerá ainda em 2022 com objetivo de seguir elaborando sobre o papel das multiplicadoras, seus desafios e aprendizados desde a primeira etapa do curso.
O desejo pelos nossos horizontes, com nossas agendas políticas, são alimentadas pelas práticas que fazemos e construímos desde o presente. Quando afirmamos que “resistimos para viver, marchamos para transformar”, evidenciamos nossos esforços de agora, que forjam as condições para um mundo sem violência,onde a vida esteja no centro.
Resistimos e marchamos
A realidade vivenciada pelas mulheres, principalmente as mulheres negras, é marcada pela política de morte do atual governo neoliberal. A miséria e o aumento da fome são assuntos fixos nos noticiários, assim como os casos de violência contra as mulheres e meninas cometidos por homens e/ou pelo Estado. Nessa conjuntura, os mecanismos de dominação e controle dos corpos, tempos e territórios das mulheres se aprofundam. Contra eles, é imprescindível lutar e resistir para viver.
No campo e na cidade, o trabalho doméstico e de cuidados recai majoritariamente sobre as mulheres, responsabilizadas por todos os afazeres necessários para que a vida exista. O esforço do capital e do Estado para invisibilizar esse trabalho se apresenta de diferentes formas. É notório o aumento das “saídas tecnológicas” para o cuidado – desde máquinas que prometem cuidar de pessoas e limpar as casas sem supervisão humana, até comidas ultraprocessadas “do futuro”. O Estado, por sua vez, reafirma lógicas patriarcais e racistas ao atribuir ao núcleo familiar a tarefa do cuidado e do amparo necessário durante todo o desenvolvimento das pessoas.
A ideia de que esses são “assuntos de casa” aumenta as fronteiras entre o espaço público e privado, como se fossem lugares desconectados. A lógica heteropatriarcal, racista e colonial do capitalismo molda a sociedade em sua totalidade a partir dessas formas de opressão, o que inclui a divisão sexual do trabalho. Por isso, propomos desmantelar as falsas dicotomias, como as divisões entre trabalho produtivo e reprodutivo, a emoção e a razão, o público e o privado.
O trabalho de cuidado se estende aos locais comuns e públicos. As mulheres estão atentas às mudanças em seus territórios: a diminuição dos rios, a contaminação da água, o aumento da temperatura, as doenças causadas pelas alterações nos ciclos da natureza, entre tantas outras interferências que tem afetado a vida de suas comunidades.
Por isso, as perspectivas desenhadas pelas mulheres são imprescindíveis para a luta política na defesa dos territórios, e fundamentais para a continuação da vida humana e não-humana. Politizar o cotidiano e organizar a luta coletiva pelo feminismo popular são tarefas cruciais na construção das agendas políticas para a transformação radical da sociedade. Não à toa, um dos motes que nós, que fazemos parte da Marcha Mundial das Mulheres, usamos na construção da luta feminista popular é: mudar o mundo para mudar a vida das mulheres, mudar a vida das mulheres para mudar o mundo.
*Renata Reis é formada em Serviço Social, integra a equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista e é militante da Marcha Mundial das Mulheres.
**A Coluna Sempreviva é publicada quinzenalmente às terças-feiras. Escrita pela equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, ela aborda temas do feminismo, da economia e da política no Brasil, na América Latina e no mundo. Leia outras colunas.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo