Por Sheyla Saori e Natália Lobo*

Colocar a nossa relação com a natureza no centro do debate político nunca foi tão necessário. Está cada vez mais evidente para as pessoas que a mudança climática é um dos grandes desafios que nossa geração enfrenta.

Lutar contra ela (e contra tantos outros problemas ambientais) passa por organizar a sociedade de outra maneira. Inclusive, cada vez temos mais evidências de que prevenir nosso mundo de epidemias como a da covid-19 passa por proteger as florestas e pensar em outro modelo alimentar.

Foi para criar uma análise e uma agenda comuns sobre este tema que, desde o ano passado, movimentos, partidos, organizações e ativistas da causa tem idealizado o Fórum Popular da Natureza (FPN). O lançamento do Fórum, que se daria originalmente na forma de um grande evento público, se converteu em um espaço virtual de debates e oficinas, que ocorreram entre os dias 01 a 10 de junho de 2020.

Em um momento de isolamento social, o FPN direcionou o debate para o problema global da pandemia e as ofensivas do atual governo neoliberal, que tem seguido com a agenda de exploração da natureza como um serviço essencial neste momento.

As mulheres marcaram presença durante a programação e pautaram a construção do feminismo como parte fundamental tanto do enfrentamento aos problemas ambientais quanto da construção de alternativas.

Na perspectiva dos movimentos, para resolver a crise ecológica é preciso derrotar o sistema capitalista, responsável por destruir cada vez mais a natureza e expandir as fronteiras de dominação sobre os territórios.

O que por vezes escapa aos olhos de algumas análises é que o patriarcado é um pilar fundamental desse sistema. As mulheres de territórios afetados pela mineração, por exemplo, denunciam como a prostituição é inserida nos territórios como parte da própria instalação das empresas nos lugares.

Além disso, os mega empreendimentos sempre contam com o trabalho não remunerado das mulheres, responsáveis por todo o cuidado das pessoas e pelo trabalho doméstico. Essas tarefas se agigantam com a quebra dos laços comunitários e com o adoecimento das pessoas.

É nesse sentido que as mulheres do movimento agroecológico, por exemplo, tem afirmado há muito tempo a consigna “sem feminismo não há agroecologia”. Mulheres em luta pela reforma agrária relacionam a produção de alimentos saudáveis com o feminismo, afirmando que constroem não só territórios livres de agrotóxicos e transgênicos, mas também livres de violência contra a mulher. Este jeito de ver a situação apareceu no FPN em diversos momentos.

Comida de verdade no campo e na cidade
A Rede de Agricultoras Paulistanas Periféricas Agroecológicas (RAPPA) falou sobre a experiência na agricultura urbana, com mulheres dos quatro cantos da cidade de São Paulo. Rosangela, do acampamento Irmã Alberta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), contou como a organização da ocupação tem se colocado para produção de alimentos e entregas de cestas, ressaltando que, mesmo em momentos de distanciamento, a união ainda prevalece.

Helena, do Grupo da Agricultura Urbana (GAU) falou sobre as atividades do viveiro escola, situada na zona leste de São Paulo, e sobre como a horta e as experiências dos trabalhos das mulheres se encontram na saúde da vida comunitária pela produção de alimentos sem veneno.

A agricultora Valeria Macoratti da Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo (Cooperapas) contou sobre a organização dos agricultores da zona sul através do cooperativismo, unindo a produção dos alimentos com a divulgação de hábitos alimentares mais saudáveis.

Daniela, do Projeto Agroterra de Suzano/SP, trouxe a experiência e a necessidade de se ocupar espaços e terrenos ociosos da cidade para a produção de alimentos.

A rede de grupos de consumo responsável da região metropolitana de São Paulo contou sobre a organização da comercialização dos alimentos das mulheres da Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras do Vale do Ribeira/SP (Rama).

Falaram sobre a importância da organização coletiva, autogestionada e solidária para acessar alimentos agroecológicos, com valores e trocas justas, junto às mulheres agricultoras.

A aliança campo-cidade é como parte essencial da construção de formas mais justas de se alimentar, sem enriquecer as grandes redes transnacionais de supermercados. Comprar de mulheres agricultoras coloca um desafio para a organização: a diversidade cultivada nos quintais e roças é tanta, que o processo de compra e logística precisa ser repensado.

Os moldes de comercialização baseadas no mercado, que só buscam a eficiência econômica, não comportam uma experiência que coloca no centro a soberania alimentar e dos territórios.

Mineração é serviço essencial e o cuidado não?
O Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) apresentou como as mulheres estão à frente das ações de solidariedade de suas comunidades durante esta pandemia. Lembraram também que o peso da informalidade, da sobrecarga de trabalho e da violência é algo para ser olhado e cuidado.

Levantando a pergunta “quem cuida de quem cuida?”, o GT trouxe a experiência da cesta de alimentos agroecológicos nas comunidades junto a uma cesta de cuidados: com fitoterápicos, homeopatia, óleos essenciais, tinturas e plantas medicinais. Estes produtos são feitos por grupos de mulheres participantes da AARJ- Mulheres da Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro.

Neste momento de crise sanitária, fica mais evidente para o conjunto das pessoas quais são os trabalhos realmente essenciais para que a vida se sustente. O cuidado com as crianças, os idosos e os doentes. O trabalho de fazer comida, manter a casa e os utensílios limpos.

Esses são os mais essenciais para que as famílias passem por este período, e são todos feitos principalmente por mulheres. Quando o trabalho de sustentar a vida é sinônimo de desvalorização, invisibilidade e sobrecarga, as mulheres afirmam que as noções de trabalho essencial e não essencial neste mundo estão deturpadas, e que o mundo que queremos é aquele que coloca o cuidado de todos – inclusive o cuidado com quem cuida – no centro.

A resistência se dá nos corpos e nos territórios
No último dia, a SOF e a Marcha Mundial das Mulheres realizaram a oficina “Economia Verde no Território do Vale do Ribeira”. Na oficina ocorreu o lançamento da publicação Economia feminista e ecológica: resistências e retomadas de corpos e territórios.

Os textos escritos por Ana Isla, Miriam Nobre, Renata Moreno, Sheyla Saori e Yayo Herrero, compõem uma análise de como a financeirização da natureza e o modelo de um desenvolvimento supostamente ambiental e sustentável, seguem na dominação e exploração, não apenas da terra, água e florestas, mas também dos corpos.

Recuperando contribuições ecofeministas e ecossocialistas, as autoras afirmam uma forma feminista de superar esta crise: antissistêmica, nos afirmando como seres ecodependentes e interdependentes, com base na agroecologia e na soberania alimentar e energética, em recusa às dinâmicas racistas da colonização, do imperialismo, do neoliberalismo.

Para resistir aos mecanismos do capital sobre as mudanças climáticas e à destruição ambiental, é preciso visibilizar e fortalecer outras formas de organizar a vida e a economia, afirmando as experiências das mulheres que coletivizam o trabalho de sustentação da vida e o colocam no centro da luta, que é feminista e também antirracista, anticapitalista e ecológica.

Esse debate foi trazido por Miriam Nobre, da SOF e da Marcha Mundial das Mulheres, no painel sobre Movimentos e natureza, que também contou com a presença de Sonia Guajajara, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Adriana Lima, do Fórum de Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira, e Alex Cardoso, do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR).

Os diversos temas abordados durante o FPN, principalmente pelas mulheres, buscaram mostrar a necessidade de superar dicotomias que separam e hierarquizam processos e sujeitos. Não há real oposição entre natureza e economia, nem entre questão ambiental e questão social.

O que há é um sistema que cria essas oposições para fazer parecer que precisamos escolher entre sacrificar a terra ou sacrificar as pessoas, quando na realidade o que gera estas contradições é o próprio capitalismo.

As experiências relatadas – sobre a organização coletiva com os trabalhos, a produção da agroecologia, a atenção aos cuidados, às resistências às ameaças em seus territórios – mostram como as mulheres constroem resistências às ofensivas violentas do capital e são protagonistas nas lutas pela retomada dos territórios e de seus corpos.

A autonomia das mulheres e autodeterminação dos povos são indissociáveis na aposta de colocar a sustentabilidade da vida no centro de como queremos organizar a economia e o mundo por vir.

*Sheyla Saori e Natália Lobo são parte da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista.