A publicação Economia feminista e ecológica: resistências e retomadas de corpos e territórios tem textos de Ana Isla, Miriam Nobre, Renata Moreno, Sheyla Saori, Yayo Herrero. Para ler, clique aqui.


Veja, abaixo, a apresentação da publicação:

Assim como os bordados, esta publicação tem muitos fios. Fios de histórias, de construir movimento com muitas parceiras.

Em 2018, estávamos em reunião com as agricultoras da Barra do Turvo, planejando a vida, e Nilce Pereira, do quilombo Ribeirão Grande, chegou de uma reunião do grupo Carta de Belém. Ela estava muito preocupada em como conversar com suas companheiras sobre as ameaças da economia verde e da financeirização da natureza. Já estava cada vez mais forte para nós a percepção de que seria impossível construir a autonomia das mulheres em torno às práticas agroecológicas sem considerar os conflitos agrários e ambientais na região. Aos poucos fomos entendendo como os mecanismos da economia verde chegam até o Vale do Ribeira, e como se combinam com projetos de desenvolvimento, articulam empresas, governo e ONGs. Em conversas com companheiras da Amigos da Terra, da Comissão Pastoral da Terra e do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais, fomos conhecendo experiências de outras comunidades.

Este ataque é difícil de perceber porque não é uma destruição direta e visível, como a mineração ou as grandes obras. É uma destruição sorrateira, que utiliza palavras dos movimentos e também conceitos complexos, que cria divisões nas organizações, que confunde. As companheiras desses movimentos nos contaram que, nas reuniões onde projetos de economia verde eram apresentados, elas muitas vezes não dominavam inteiramente os conteúdos nem conseguiam interferir na forma como a discussão era feita, mas assim mesmo reagiam, porque sentiam um aperto no coração, um embrulho no estômago. Entendemos que a suspeita das mulheres de que algo não está certo é algo a ser levado muito a sério, e a suspeita se manifesta no corpo. É preciso ouvi-lo.

Estas suspeitas guiaram as análises de Sheyla Saori no texto Economia verde e a financeirização da natureza no Vale do Ribeira: as respostas das comunidades e das mulheres para as mudanças climáticas. Ela aborda projetos do governo do estado de São Paulo para o “desenvolvimento” do Vale do Ribeira, uma região de rica sociobiodiversidade, mas com sérios problemas socioeconômicos, como a exploração sexual de meninas e mulheres na rodovia BR-116, a contaminação por agrotóxicos dispersos em pulverizações aéreas e a pobreza de famílias com pouca ou nenhuma terra. O projeto “Vale do futuro” considera esta uma região sem memória, sem comunidades que ali vivem no presente, e aponta para a mineração e a monocultura compensadas por áreas de conservação e turismo como ativos verdes, contabilizados em uma métrica que se desenha no projeto “Conexão Mata Atlântica”.

Encontramos essa mesma combinação no texto Quem paga pelo protocolo de Kyoto? A venda de oxigênio e a venda de sexo na Costa Rica, de Ana Isla, professora de sociologia e estudos sobre a mulher da Universidade de Brock, no Canadá. Em mais um fio da história, traduzimos este texto quando nos preparávamos, em 2012, para a Cúpula dos Povos paralela e contraposta à Conferência das Nações Unidas Rio+20. A forma como ela aterrissa a economia verde no cotidiano das mulheres nos impressionou e nos ajudou a formular a consigna “para as feministas o capitalismo não tem eco”, que Ana Isla gritou conosco pelas ruas do Rio de Janeiro. Esta consigna resume a posição da Marcha Mundial das Mulheres de se contrapor às falsas soluções maquiadas de lilás, como as centradas em garantir o acesso das mulheres aos chamados benefícios das negociações sobre REDD+ (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal). Ao envolver o manejo sustentável (como a agrofloresta), essas negociações introduzem as florestas no circuito de financeirização do capital.

Para resistir aos mecanismos da economia verde às falsas soluções sobre as mudanças climáticas e à destruição ambiental, sabemos que é preciso visibilizar e fortalecer outras formas de organizar a vida e a economia. Nossa formação coletiva e autogestionada faz parte desta costura, que é feminista, antirracista, anticapitalista e ecológica. Construindo a Rede Economia e Feminismo (REF) no Brasil e a Rede Latino-americana de Mulheres Transformando a Economia (REMTE), nos aproximamos da economia feminista e a entendemos como uma vertente das economias críticas que se potencializa no diálogo com outras, como a economia solidária e a economia ecológica. O artigo Economia ecológica e economia feminista: um diálogo necessário da feminista Yayo Herrero, integrante da organização Ecologistas em Ação, no Estado Espanhol, é parte fundamental de nossa formação. Em 2014, reunimos companheiras do movimento agroecológico e da REF para debatê-lo virtualmente com Yayo. Em seguida, conversamos sobre nossas experiências de construção conjunta entre mulheres de pensamento e prática agroecológica. Nossas práticas dialogam com seu convite a “participar e incentivar a participação em experiências alternativas” e a “transformar imaginários coletivos”, caminhos que alteram os modelos de produção e reprodução social. Nesta publicação, juntamos ainda o artigo A vida em situação de guerra: coronavírus e a crise ecológica e social, que nos parece um exercício de olhar para o contexto atual usando as lentes da economia ecológica e da economia feminista.

Por fim, o artigo de Miriam Nobre e Tica Moreno, Natureza, trabalho e corpo: percursos feministas e pistas para a ação, parte de conceitos básicos da economia ecológica expandidos junto à economia feminista, para destacar o corpo como território onde natureza e cultura convergem. Buscando superar dicotomias e dualidades, recuperam contribuições ecofeministas e ecossocialistas, refletem sobre a atualização de mecanismos de controle do capitalismo racista e patriarcal, sem deixar de afirmar a capacidade de resistência e reconstrução dos corpos em movimento.

Na tentativa de alinhavar todos esses fios e assuntos, demos a esta publicação o nome Economia feminista e ecológica: resistências e retomadas de corpos e territórios. Retomada é como o povo Guarani Kaiowá chama a reocupação dos territórios onde seus antepassados viveram, plantaram e colheram. E, como contou Julia Gimenes, da aldeia Som dos Pássaros, a coragem para fazer a retomada não é uma coragem das armas, e sim a coragem do nosso coração. Para ela, pedimos essa palavra para falar também de como superar a separação de nosso corpo, de como escutar o coração.

As resistências às ofensivas violentas do capital e as lutas de retomada dos territórios, por autonomia das mulheres e autodeterminação dos povos são indissociáveis na aposta de colocar a sustentabilidade da vida no centro, para transformar a economia.

Agradecemos a Ana Isla e Yayo Herrero por autorizar a tradução e publicação de seus artigos. Também agradecemos ao coletivo Teia de Aranha, responsável pelos bordados que ilustram a capa e o interior da publicação e que também nos inspiram a olhar para a história do nosso mundo como linhas que podemos desemaranhar, fiar, trançar, costurar e criar. Às participantes do grupo de estudos Feminismo e Agroecologia pelas ideias compartilhadas e à Fundação Rosa Luxemburgo pelo apoio aos nossos esforços de entender as ameaças da economia verde e de ser mais fortes do que elas.

São Paulo, junho de 2020

As Semprevivas