No final de setembro, a publicidade sexista entrou em debate a partir da solicitação feita pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) ao Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar) para que um comercial da Hope fosse suspenso, por reforçar o estereótipo da mulher como objeto sexual. Na propaganda, Gisele Bündchen ensinava as mulheres a melhor forma de dar uma notícia ruim ao marido: apenas de lingerie. A reação ao pedido tomou grande proporção, ocupou páginas de jornais de grande circulação e páginas na internet. Em sua maioria, os argumentos reforçaram mais uma vez estereótipos sexistas, como o que afirma que as feministas não têm senso de humor ou que as críticas às propagandas partem de mulheres feias. Poucas foram, entre as questões abordadas, as que se relacionavam à reflexão sobre a mercantilização do corpo das mulheres.
Não é de hoje que a publicidade usa estereótipos e preconceitos em sua concepção. Também não é novidade o questionamento feminista a essa utilização. Podemos identificar um padrão na publicidade: reproduz o machismo de maneira explícita ou sutil. Explícita, quando a mulher retratada se confunde com o produto que se pretende vender; sutil, mas ainda óbvia, quando aparece no papel vitalício de mãe, dona de casa, paciente e sorridente, que terá seu trabalho reduzido por um produto fantástico para limpar melhor a casa.
Mas a crítica feminista à mercantilização do corpo das mulheres na publicidade e na sociedade em geral não se restringe ao questionamento da exposição permanente de corpos nem à análise de uma ou outra propaganda isolada de um debate maior.
A lógica da mercantilização atua de múltiplas formas. Constrói padrões de beleza em torno de um corpo ideal, que pode ser atingido através do consumo dos produtos certos, e assim movimenta a economia. Em 2008, a crise nem passou perto das indústrias cosmética e farmacêutica, que cresceram por volta de 8%. As mulheres compõem a maior fatia desse mercado consumidor, em uma busca incessante de moldar o corpo, a aparência e o comportamento.
Esses padrões, baseados em um modelo de feminilidade que naturaliza o lugar das mulheres e sedimenta as exigências sobre elas em função do olhar, expectativas e desejos masculinos, têm efeitos drásticos sobre o corpo e a saúde. Não por acaso, a OMS aponta transtornos alimentares como a anorexia e a bulimia entre as principais causas de morte de mulheres jovens em alguns países, como a Itália.
Para as mulheres que estão no mercado de trabalho, o sucesso profissional deve ser conciliado com a formação e manutenção de uma família feliz, na qual continuam responsáveis, se não por todo o trabalho doméstico, por grande parte dele. Este é, muitas vezes, terceirizado para outra mulher, o que faz com que o emprego doméstico seja a principal ocupação das mulheres, sobretudo negras, no Brasil atual. Ao trabalho remunerado fora de casa e às pressões para dar conta da sobrevivência e do equilíbrio da família, da educação dos filhos, do cuidado com os idosos, soma-se a necessidade de estarem sempre bonitas e com o corpo na forma estabelecida pelas capas de revistas, além de alegres e pacientes. Para isso, o mercado oferece cremes, maquiagens, medicamentos comportamentais para reduzir o apetite e controlar a ansiedade.
Segue em voga, portanto, uma noção do ser mulher baseada em imposições que mantêm um modelo de submissão, docilidade e disponibilidade das mulheres, disfarçado de liberdade de escolha. Tal modelo permite, ainda, a proliferação de discursos misóginos e de controle sobre a sexualidade das mulheres, desde os que pregam explicitamente, na internet, o estupro corretivo em mulheres lésbicas, negando-lhes o direito à autonomia e autodeterminação, até os que repercutem, também de maneira explícita e em rede nacional, que o estupro é um favor para as mulheres feias. Daí a tranquilidade de fazer uma propaganda que ensina as mulheres a dar notícias ruins ao marido de uma forma que evite problemas tão naturalizados como a violência sexista. Considerada a frequência da violência física contra as mulheres, a mensagem de uma propaganda desse tipo poderia ser lida como: se você der essa notícia de roupa, bater o carro pode justificar que seu marido bata em você. Banaliza-se, assim, a violência que atinge cinco mulheres a cada dois minutos no Brasil.
Uma mercadoria é um objeto, sem vontade, sem autonomia. A lógica da mercadoria tem tanto poder e capilaridade porque esta sociedade ainda resiste em considerar a mulher como sujeito, cidadã com autonomia para decidir sobre seu corpo e seu destino. Uma das expressões máximas da mercantilização se consolida na indústria do entretenimento, que se vale da consideração do corpo da mulher como um objeto sexual, que existe em função da satisfação do desejo de alguém – este, sim, um sujeito.
Cabe retomar, aqui, a afirmação feita pela Hope em resposta à nota da SPM sobre a “sensualidade natural da mulher brasileira, reconhecida mundialmente”. Mais uma vez, não se pode analisar tal argumento isolado do que significa a utilização do corpo das mulheres, como mercadoria, na indústria do entretenimento, que tem como um de seus pilares no Brasil o turismo sexual e a prostituição, que geram lucros por meio da exploração de meninas e mulheres.
O país do futebol prepara-se para sediar a Copa do Mundo, evento esportivo que nas últimas edições, na Alemanha e na África do Sul, movimentou muito dinheiro através da prostituição, regulamentada ou não. Desnaturalizar a mercantilização do corpo das mulheres, nesse contexto, adquire centralidade para enfrentar o aumento da exploração sexual tanto no entorno das grandes obras que fazem parte da preparação do país para a Copa como durante o próprio evento.
A ação contra todas as dimensões da mercantilização do corpo e da vida das mulheres, mencionadas neste texto, é permanente na agenda feminista no Brasil. Por isso, movimentos como a Marcha Mundial das Mulheres manifestaram seu apoio ao questionamento à propaganda da Hope apresentado pela SPM ao Conar e seguem em um enfrentamento global a todas as formas de violência contra as mulheres.
O combate aos estereótipos de gênero e raça, na cultura e na comunicação, previsto no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, cuja implementação é coordenada pela SPM, insere-se nesse cenário mais amplo, em que é preciso analisar e enfrentar as reações patriarcais frente aos avanços das mulheres em algumas áreas, sobretudo após a eleição da primeira mulher para a Presidência do país.
A visão difundida pelos meios de comunicação – os mesmos que atuam para deslegitimar o discurso feminista – de que as políticas para as mulheres deveriam se localizar e, portanto, se diluir em um ministério dos direitos humanos caminha no sentido oposto à construção da igualdade e da liberdade das mulheres. Estas só serão conquistadas na medida em que haja uma interferência nas estruturas que sustentam a desigualdade, ou seja, na divisão sexual do trabalho e na mercantilização do corpo e da vida da mulheres. Para avançar na construção de igualdade, no âmbito do governo federal, é preciso aprofundar a institucionalização das políticas para as mulheres, ampliando a capacidade de atuação da SPM.
As políticas públicas contribuem, sim, para o rompimento das dinâmicas da desigualdade entre homens e mulheres que constituem um dos pilares do atual modelo, mas não são capazes, sozinhas, de alterá-las. Isso passa por profundas transformações nas práticas e relações sociais, e portanto por uma ampla e forte mobilização das mulheres em luta para mudar o mundo e a própria vida, em um só movimento.
Tica Moreno é socióloga, integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e militante da Marcha Mundial das Mulheres