No artigo “Normas de gênero, práticas e saberes agrícolas femininos no Camarões: uma abordagem histórica”, Chantal Ndami relata as normas de gênero e modalidades de produção agrícola no século XIX na região oeste do Camarões, habitada pelas etnias bamileke e nso. A agricultura era praticada em uma região montanhosa, de campos de altitude, com declividade em alguns casos de 30%, solos vulcânicos e fortes chuvas.
As mulheres se dedicavam à agricultura de subsistência e os homens à pecuária. As mulheres eram consideradas como quem alimenta o mundo, com a responsabilidade de assegurar a alimentação da família e produzir um excedente a ser comercializado. A agricultura era de domínio feminino e associada à feminilidade. Esta foi uma das agriculturas mais produtivas da África subsaariana, região do continente africano situada ao sul do deserto do Saara.
As mulheres detinham conhecimentos empíricos sobre as plantas, ciclo vegetativo, associações entre elas, quais cuidados necessitavam, quais solos eram apropriados, rendimentos e qualidades nutritivas, sendo os alimentos categorizados segundo o uso (como por exemplo, alimentos para grávidas, parturientes, para superar uma fadiga momentânea, entre outros).
Eram as mulheres as responsáveis pela seleção, conservação, utilização e circulação das sementes com uma gestão rigorosa da agrobiodiversidade, sendo o processo de diversificação de culturas uma preocupação constante. O uso das cinzas para recuperar a fertilidade do solo também era eficaz contra algumas doenças de tubérculos e certos insetos e roedores que atacavam as sementes. Os saberes ligados às sementes constituíam um elemento fundamental na educação agrícola das jovens nestas comunidades.
As mulheres desenvolveram métodos de cultura, manejo dos solos e de sua fertilidade, eficazes para o cultivo em uma região montanhosa e sujeita a erosão. Elas tinham consciência da fragilidade dos solos. Plantavam morro abaixo com sulcos feitos na enxada e plantam cercas viva na curva de nível, o que retinha a água da chuva e facilitava a infiltração. Também utilizavam associação e rotação de culturas, plantio/manejo de árvores, adubação verde, plantas de cobertura (sang), cinzas domésticas, resíduo orgânico doméstico, esterco animal.
Elas realizavam uma prática chamada écobuage, que é característica da agricultura bamileke: consistia em carpir, enterrar a palhada e colocar fogo para uma combustão lenta e abafada. Esta técnica permitia obter solos mais leves e mais fáceis de trabalhar, com uma concentração mineral favorável à nutrição das plantas. Era utilizada nas áreas que são mais bem cuidadas, ao redor da casa, cultivadas intensamente com alimentos diversos consumidos pelas famílias.
Todos estes conhecimentos foram adaptados frente à pressão demográfica e mudanças na estrutura agrária que as obrigou a cultivos mais intensivos e o abandono da prática de pousio, técnica da agriculta tradicional. Neste caso passaram a usar mais esterco animal, o que destaca a importância da relação agricultura – de responsabilidade das mulheres – e pecuária – de responsabilidade dos homens.
A competência das mulheres na agricultura era esperada e valorizada. Elas eram as ma’su, mãe da enxada. A enxada é um instrumento de trabalho essencialmente feminino, fazia parte do enxoval das noivas e permitia às mulheres não só assegurar o sustento alimentar da família, mas sua independência econômica. Todas as mulheres eram antes de tudo agricultoras e a rainha mãe era responsável pelos trabalhos coletivos que se davam formalmente, nas associações femininas, ou informalmente, entre grupos de vizinhas ou familiares.
A solidariedade entre as mulheres era base de sua integração na vida social e econômica e os trabalhos coletivos realizados cada vez na área de uma delas. Os trabalhos coletivos e as feiras eram espaços de transmissão de saberes, inovações agrícolas, trocas de sementes de diferentes cultivares. As feiras eram um lugar de encontro de famílias que viviam isoladas, dia de pausa no trabalho agrícola, onde as pessoas se informavam, descobriam novas plantas e variedades, faziam trocas com povos vizinhos. A circulação de sementes tinham uma função na construção e consolidação de alianças, como nas alianças matrimoniais. Elas fazem parte do enxoval da noiva, presente de sua mãe e parentes mulheres.
A colonização inglesa impôs uma modernização agrícola, com a introdução da monocultura de café e de sementes homogêneas, cultivo em terraços e curva de nível. Permaneceram as práticas de adubação verde e uso de esterco animal. As mulheres se mostravam reticentes a estas mudanças e o fato de as práticas agrícolas serem transmitidas de mãe à filha pareceu aos colonizadores que eram imutáveis.
A agricultura realizada pelas mulheres foi considerada atrasada, um modo irracional de fazer agricultura, com a ideia de que o plantio no sentido do declive era por preguiça. Ainda que um agrônomo da época tenha escrito que naquela formação os terraços poderiam acumular água, apodrecer as raízes e causar deslizes mais graves. Para impor a monocultura do café e as novas técnicas os homens foram convocados à agricultura. A écoubage foi proibida. Esta intervenção teve como consequências: o enfraquecimento das redes de mulheres e das redes sociais, perda de cultivares, ruptura do equilíbrio do sistema de produção de alimentos, redução da criação de animais, desaparecimento das cercas viva, baixa de rendimento das culturas agrícolas, mudança nas normas de gênero, masculinização da agricultura, restrição do direito das mulheres ao uso da terra, deslegitimação do papel das mulheres na agricultura.
Esta visão de modernização da agricultura se manteve após a independência. Estas mudanças afetaram às mulheres, suas práticas agrícolas, papéis sociais e econômicos, reconhecimento de seus saberes e tecnologias e confiança em sua capacidade de inovação com consequências até os dias de hoje.
O conhecimento destas agricultoras é no presente uma questão central na preservação da biodiversidade, dos recursos naturais e da segurança alimentar.
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*Esta é uma resenha do artigo “Normes de genre, pratiques et savoirs agricoles féminin au Cameroun: une approche historique” de Chantal Ndami. Publicado originalmente em: https://books.openedition.org/iheid/7572
**Chantal Ndami é ativista afrofeminista e pesquisadora independente baseada em Dakar, Senegal. Doutora em História da África Contemporânea pela Université Paris Cité.
Por Miriam Nobre, coordenadora da equipe técnica da SOF Sempreviva Organização Feminista
