*por Sonia Coelho, publicado originalmente no Brasil de Fato

As eleições municipais de 2024, mais uma vez, foram marcadas por desigualdades de gênero, raça, classe, sexualidades. Isso não é novidade. Há anos os movimentos sociais no Brasil denunciam que este sistema político necessita de uma reforma política profunda. Só assim será possível que o conjunto da sociedade, em seus diversos setores, possa ser representado no Legislativo e Executivo, assim como exercer de forma direta e ativa o direito de tomar decisões sobre os rumos da sociedade e do país.

Outro ponto de atenção é o desinteresse e/ou recusa pelo voto, como vimos no número de anulação de votos e de abstenção. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a abstenção na capital paulista chegou a 31,54%, número maior do que o registrado nas eleições de 2020, quando a disputa se deu em meio à pandemia de covid-19. Porto Alegre, com 34,83%, bateu seu recorde de abstenção. Cerca de 29% de pessoas não compareceram às urnas no segundo turno no Brasil inteiro.

Desde o golpe que atacou a democracia, organizado em 2016, a direta tem se utilizado da desqualificação como um elemento que cria desalento e afasta as pessoas da participação política. A mesma direita segue atuando a partir da desinformação, notícias e conteúdos falsos para banalizar e escrachar a atuação política.

A violência política e o racismo presentes nas campanhas eleitorais também são elementos que criam obstáculos para a participação, principalmente entre mulheres, as populações negra e indígena, LGBTQIA+, grupos que mais têm sofrido com a violência misógina e racista.

Outro fator que contribui para o esvaziamento das pautas no período eleitoral é a forma como são organizados os debates televisivos. Infelizmente a discussão programática sobre a cidade, seus problemas e soluções, perde espaço para as disputas personificadas do jogo político.

A figura do/a candidato/a é colocada em primeiro plano, tendo a dinâmica das redes sociais como impulsionadora desse processo, o que colabora para que a eleição pareça algo do espectro individual, e que, na ordem de um discurso violento e conservador, reforça a ideia da família heteropatriarcal como referência de sucesso. Não é a toa que muitos candidatos homens se apresentam e utilizam da sua imagem com a esposa/companheira e filhos, como se a ocasião também se tratasse de negócios de família. Isso também espelha e reforça valores que o feminismo critica.

É neste cenário que não falta a violência e seu uso como forma de ganhar votos, com direito a episódios de demonstração gratuita de violência física e moral em rede aberta de televisão. No caso das candidaturas de mulheres e pessoas trans, por exemplo, há tentativas constantes de constrangimento e desqualificação, como se elas estivessem em um lugar inadequado.

A eleição municipal é fundamental para a vida cotidiana das pessoas, é no território que se concretizam as políticas públicas e a zeladoria da cidade. Infelizmente, ainda falta a compreensão de que os problemas da cidade refletem a má gestão da prefeitura: se falta a creche, falta vaga na escola, se há precariedade e desmonte na saúde e outros serviços, nas políticas de prevenção para enchentes, entre outras questões.

O exemplo mais chocante e simbólico destes tempos é a reeleição do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB). Vimos as intensas chuvas provocadas pelo colapso climático, com a comprovação de que as consequências poderiam ser bem menores se a prefeitura tivesse uma política preventiva e de cuidado, já que a cidade é propicia a enchentes.

O mesmo povo que sofreu, reelegeu este prefeito, assim como uma grande parte não foi votar, permitindo que ele vencesse. Já em Florianópolis, o prefeito Topázio Neto (PSD), aliado de Bolsonaro, foi eleito no primeiro turno, em uma cidade que, como em tantas outras, as unidades de saúde estão sem médicos para atender a população e as escolas municipais estão sem vaga para novas matrículas, por exemplo. Fica nítido que neste jogo de poderes um prefeito não precisa trabalhar e oferecer políticas, basta muito dinheiro para fazer uma boa propaganda, muitas barganhas e assim conseguir ser reeleito.

Políticas feministas antirracistas para garantir a sustentabilidade da vida nos municípios

A questão climática é um dos principais pontos de discussão no período eleitoral de 2024. Todas as cidades brasileiras, em alguma medida, têm sofrido as consequências geradas pelos desastres climáticos, seja com as enchentes, ventos muito fortes, secas, queimadas criminosas, entre outras questões. A sustentabilidade da vida deve ser o centro dos programas e debates eleitorais. No entanto, não foi isso que vimos nas campanhas.

Por isso o feminismo popular defende a agroecologia feminista, as cozinhas comunitárias, a reforma agrária e políticas de habitação e gestão das cidades que enfrentem de verdade os desafios de viver nos municípios rurais e urbanos.

Outro tema central para as cidades, e que as feministas vêm defendendo há anos, é a questão dos cuidados. As mulheres, nos diversos municípios, estão saturadas pela falta de apoio e compartilhamento do trabalho de reprodução da vida. Com isso, a vida fica precarizada. As populações estão envelhecendo, inúmeras pessoas se encontram adoecidas física e mentalmente, por contextos diversos, e os trabalhos cotidianos, que todas as pessoas necessitam para sobreviver, continuam como responsabilidade das mulheres, principalmente as mulheres racializadas e pobres.

Também pautamos há anos a necessidade da defesa do aborto seguro, legal e gratuito junto à educação sexual nos conteúdos programáticos dos governos. Temas que continuam sendo mobilizadores para a direita e extrema direita, na visão conservadora e fundamentalista, que negligencia o direito das mulheres, meninas e pessoas trans de abortar, inclusive nos casos previstos em lei. Hoje, principalmente crianças e adolescentes estupradas enfrentam a negação do seu direito ao aborto legal. Segue sendo importante lembrar o que é óbvio: gestação em criança é tortura. É dever da prefeitura implementar serviços de aborto para todas as pessoas que precisarem.


Disputas e desafios para o campo popular

As eleições deste momento foram também marcadas pelas emendas parlamentares de âmbito federal, revelando o poder do Congresso Nacional, que elegeu seus prefeitos e vereadores contemplados com as emendas, e que certamente devolverão a reeleição no próximo pleito. Tais emendas se tornam moedas de troca neste modelo atual de gestão dos recursos públicos. O poder do dinheiro público se concentra de forma individual na mão de deputados que utilizam os recursos não para promover as políticas públicas, mas para promoção própria e de seus aliados.

Neste jogo de cartas marcadas, a direita e a extrema direita levaram vantagem. Embora o PT, sendo o maior partido de esquerda do país, apresentar um pequeno aumento no número de prefeituras – de 182 cidades em 2020, para 252 em 2024 –, outros partidos do campo, como Psol, PCdoB, PSTU e UP, não foram vitoriosos em nenhuma cidade. Quem mais despontou foi o PSD, partido de direita aliado ao bolsonarismo, chegando a 885 eleitos no Brasil todo.

Do ponto de vista do avanço e ajustes de políticas públicas é um resultado péssimo. A maioria das cidades serão governadas pela direita retrógrada, o que não possibilita a participação popular, a implementação de políticas públicas para alterar desigualdades de gênero e raça, e mesmo políticas e benefícios federais são na maioria das vezes boicotados por prefeitos de direita, deixando a população em situação de descaso.

Vale salientar também que dos 5.570 municípios, apenas 13% serão governados por mulheres, e em sua maioria mulheres de partidos da direita, como é o caso das duas únicas capitais: Campo Grande e Aracaju.

Com o feminismo, temos enfatizado que cada vez mais que a ideia de “mulheres no poder” precisa ser politizada e qualificada. Não basta eleger mulheres, é preciso eleger mulheres, pessoas negras, indígenas, LGBTI+ que possuam um programa feminista, antirrascista, contra a lgbtfobia e com compromissos reais com o conjunto da população e da classe trabalhadora

Quando isso não acontece, nos deparamos com este cenário de mulheres da direita e extrema direita eleitas, que atrapalham ainda mais o avanço das pautas feministas, antirracistas e contra a lgbtfobia. Suas falas contribuem para promover retrocessos de direitos, reforçam lugares de subordinação para as mulheres e apoiam pautas conservadoras ultraneoliberais. E mesmo no caso de mulheres do centro, que se dizem progressistas, como Tabata Amaral (PSB), quando se trata de temas gerais da classe trabalhadora, seus posicionamentos estão alinhados à direita, como foi no caso da reforma da Previdência, que afetou profundamente a vida das mulheres e pessoas pobres, racializadas e de categorias como a do professorado, em que a grande maioria são mulheres.

Conquistas dos movimentos populares no pleito eleitoral

Mas mesmo diante deste cenário não podemos deixar de comemorar as conquistas dos movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e nossas companheiras da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) com candidaturas eleitas em mais de 20 estados pelo Brasil, representando a força dos movimentos populares e do movimento feminista nas disputas políticas.

Nos alegramos especialmente com a reeleição de Margarida Salomão (PT) em Juiz de Fora, mulher muito engajada e comprometida com as lutas sociais, e a ida da jovem Natália Bonavides (PT) para o segundo turno na disputa da prefeitura em Natal, feminista que despontou como uma renovação do Partido dos Trabalhadores.

Mulheres que em diferentes cidades assumiram a luta feminista antirracista, colocando as questões da sexualidade e autonomia do corpo – como o aborto – articuladas às lutas da classe trabalhadora. São pautas a que a maioria da esquerda tem ojeriza, por medo de falar e perder votos pelas reações da extrema direita. Essas candidaturas de mulheres deixam o recado para o nosso campo: se elegeram justamente porque também falaram destes temas, centrais para a vidas das mulheres e o conjunto da classe trabalhadora. O MST elegeu gente pautando a questão da fome e da necessidade da reforma agrária, temas que também são muitas vezes interditados pela maioria da esquerda.

Enquanto a direita explicita o tempo todo seu projeto integral de destruição de direitos e retrocessos, nosso campo, muitas vezes, até esconde as cores, mede palavras, tem medo das pautas feministas. O resultado tem sido a dificuldade em fazer avançar a luta popular, feminista e antirracista nos debates e enfrentamentos da política partidária e institucional.

Por isso, nós feministas seguiremos em marcha, pois sem uma perspectiva feminista popular, de todas as mulheres e do conjunto da classe trabalhadora, não haverá revolução.

*Sonia Coelho é assistente social e integrante da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista.