Durante a campanha eleitoral de 2010, foi perdida mais uma oportunidade de discutir de forma ampla e aprofundada a questão do aborto na sociedade brasileira. O tema foi, mais uma vez, colocado de forma equivocada, acusatória, demonstrando o quanto princípios como Estado laico e direito da mulher ainda precisam ser exaustivamente defendidos.

Os três candidatos à presidência mais bem colocados nas pesquisas de intenção de voto tinham, de forma genérica, as seguintes posições em relação ao aborto: o PSDB não possui uma posição partidária aprovada, mas era conhecida a posição pessoal do candidato José Serra que, como Dilma Rousseff, se dizia pessoalmente contra o aborto, mas a favor de que a questão fosse
tratada como problema de saúde pública, em função das mortes, sequelas e do alto custo do atendimento do aborto inseguro no serviço público. Marina Silva sempre se colocou contra, argumentando a partir de suas convicções religiosas, embora o PV tenha em seu programa posição favorável à descriminalização.

Setores da Igreja Católica divulgaram a posição congressual do PT a favor da descriminalização e regulamentação nos serviços públicos de saúde, e pressionaram para que a candidata Dilma Roussef tomasse posição. A partir desse momento, o aborto foi foco de debates e muito explorado pelo candidato Serra, reforçando a agenda de conservadorismo e criminalização das mulheres.

No segundo turno, com o acirramento da disputa, a campanha de Dilma se deixou encurralar pelas chantagens dos setores das igrejas evangélicas e católica e apresentou um documento considerado inaceitável pelas feministas e por vários setores progressistas. O resultado é que se reforçou a confusão entre religião e política, e não se considerou o princípio de laicidade do Estado.

O aborto no Brasil

A cada ano são realizados cerca de um milhão de abortos no Brasil. O procedimento, que é considerado crime, está previsto no código penal e prevê pena de um a três anos de detenção para a mulher que o pratica, sendo permitido somente em caso de gravidez resultante de estupro ou de risco de vida para a mãe.

As brasileiras se utilizam de vários métodos para iniciar o abortamento, tais como chás, introdução de sondas, e nas últimas duas décadas, dados apontam que a utilização do medicamento misoprostol, vendido em mercados paralelos (atualmente a sua venda em
farmácias está proibida, sendo permitida somente sua utilização intra-hospitalar em casos de aborto legal), contribuiu para a diminuição da morbidade e mortalidade a partir da generalização
do seu uso.

Há também clínicas clandestinas, em que a segurança e qualidade do atendimento dependem do preço. Em São Paulo, o procedimento custa em torno de R$ 2.500,00 (aproximadamente mil euros), sendo, portanto uma opção disponível para poucas.

A realização do aborto em condições inseguras e suas sequelas são a terceira causa de mortalidade materna no Brasil e cerca de 250 morrem todos os anos. A grande maioria das mulheres que morrem são pobres, jovens, negras e moradoras do meio rural. As pesquisas revelam que quase 50% das mulheres que interromperam uma gravidez são casadas ou vivem com companheiros, e têm filhos (no Brasil, uma a cada sete mulheres entre 18 e 39 já abortou). A falta de acesso permanente e estável à anticoncepção é um dos fatores principais. Porém é determinante o padrão de sexualidade e a recusa dos homens em usar a camisinha (como é conhecido o condom no Brasil).

A luta pela descriminalização do aborto no Brasil

Desde a segunda metade dos anos 1980 houve uma ampliação do debate e luta pela descriminalização do aborto no país. A partir de 1995 há um refluxo neste processo. De um lado tornou-se hegemônica no movimento de mulheres a posição aprovada na Conferência da ONU sobre População, realizada no Cairo, que centrou a atuação em lobbys no Congresso para regulamentar no serviço público os casos previstos em lei, em detrimento da pauta pela descriminalização. Do outro, ocorreu a articulação sistemática de setores “Pró-vida”, que atuam no legislativo, e que têm organizado ações para criminalizar as mulheres.

Com a eleição de Lula, em 2003, houve uma retomada do debate pela descriminalização e legalização. Após a primeira conferência governamental de política para as mulheres, em 2004, foi criada uma comissão tripartite (Executivo Federal, Legislativo e sociedade civil) que elaborou uma proposta de projeto de lei, que não chegou a ser votada. Esse foi um momento importante, pois a iniciativa partiu do executivo federal legitimada pelo debate amplo da conferência que contou com 1787delegadas, representando 120 mil mulheres participantes nas etapas municipais e estaduais. Paralelamente, cresceram as iniciativas do setor Pró-vida, impedindo qualquer avanço legislativo.

Há um grande desafio de retomar o tema da descriminalização do aborto. Para isso, o debate deve ser incorporado pelo conjunto dos movimentos sociais, partidos, e setores progressistas e de esquerda. A defesa da autonomia das mulheres é central, assim como o combate à hipocrisia que criminaliza as mulheres e coloca suas vidas em risco. O outro elemento é a necessidade de avançar em relação à laicidade do Estado. Sabemos que isso só ocorrerá com um forte processo de mobilização e luta do movimento de mulheres, no sentido de buscar processos de aliança mais amplos.

A tentativa mais recente de aglutinar forças sociais em torno da necessidade de debater e lutar pela descriminalização do aborto resultou na constituição da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto. A Frente tem se reunido periodicamente e realizado ações de conscientização e atos públicos sobre o tema. Apesar da ofensiva dos setores conservadores contra a legalização, o movimento de mulheres seguirá procurando dialogar com os mais diversos setores, inclusive com o governo da presidenta Dilma Rousseff.

Nalu Faria é psicóloga, coordenadora geral da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e integrante da Secretaria Nacional da Marcha Mundial das Mulheres.

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